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Espiritualidade e Vida Humana Teofilo Cabestreros, cmf

Introdução Primeira parte: Hoje cresce o reconhecimento prático e teórico da necessidade de ?espiritualidade humana? ? Todo o mundo vive experiências humanas de ?transcendência?. ? São abertos novos caminhos e metas positivas de ?espiritualidade humana?. ? Reconhecimento teológico da ?espiritualidade humana?. Segunda parte: Alguns valorizam a ?espiritualidade humana? como verdadeira religião Terceira parte e conclusão: A espiritualidade nas Religiões e a espiritualidade cristã devem cultivar também a maturidade espiritual humana.

Começo enunciando em forma de síntese o que vou desenvolver neste segundo tema: O fato de que a pessoa humana, homem ou mulher, possa viver uma espiritualidade humana à margem das igrejas e de qualquer Religião, não é somente uma possibilidade, mas uma realidade. Mais ainda: é a realidade cotidiana mais básica, universal e maciça na humanidade. Hoje a consciência deste fato cresce na humanidade e se generaliza a convicção de que as pessoas podem viver sem fé cristã e sem religião, mas não podem viver sem espiritualidade humana, porque sem espiritualidade se desumanizam.

Esta consciência se expande até o ponto de alguém valorizar a espiritualidade humana como a religião mais verdadeira e autêntica. E também vai sendo uma convicção crescente a afirmação de que o nível humano da experiência espiritual deve ser exigente com a espiritualidade religiosa e a espiritualidade cristã, pois, se não proporcionam a maturidade espiritual humana, se desacreditam e correm o risco de não serem suficientemente humanizantes e inclusive ficarem desumanas.

Estas afirmações serão desenvolvidas em três partes: 1ª. Hoje cresce o reconhecimento prático e teórico da necessidade dos valores da espiritualidade humana. 2ª. Alguns valorizam a espiritualidade humana como a religião mais verdadeira. E 3ª. Todas as espiritualidades (também nas Religiões e nas Igrejas cristãs) devem incluir e proporcionar a maturidade espiritual humana.

Primeira parte

Hoje cresce o reconhecimento prático e teórico da necessidade de “espiritualidade humana”

Três pontos tem a exposição desta primeira parte:

Ponto 1:

Todo o mundo vive experiências humanas de “trascendência”

Todas as pessoas humanas sentem necessidades e têm capacidade inata de transcendência ousuperação. Por tendência natural, nosso ser não quer estabilizar-se, fechar-se e paralisar-se. Aspiramos crescer, ser mais, saber mais, ter mais e melhor. Isto é transcender.  Precisamos viver experiências humanas de transcendência, de crescimento, de ir mais além. O ser humano é um ser de desejos, de aspirações, de sonhos e ideais. Necessidade e capacidade inatas de transcendência: não é algo acrescentado ou adquirido, é algo inato, natural, está em nosso ser humano, nascemos com esta necessidade e capacidade; embora tenhamos que educá-las, estimulá-las e orientá-las. Uns as têm mais despertas e outros mais adormecidas.

Esta necessidade e capacidade de transcender e transcender-se se manifesta na busca de experiências de transcendência. As buscas começam desde muito cedo. Primeiro é algo biológico e instintivo e com a idade vai se desenvolvendo e orientando conforme as circunstâncias, o temperamento, afeições e possibilidades com que cresce cada um. Isto nos acompanha em todas as etapas da vida. E se realiza em todas as esferas ou dimensões, situações e atividades pessoais e coletivas do viver. De alguma maneira, é o motor da vida mesma que cada um leva em seu ser.

Quer na vida familiar, quer profissional (se ouve dizer: aspiro, desejo, procuro que meus filhos sejam e tenham o que eu não pude ser nem ter). Ou na capacitação, os conhecimentos, o estudo, a leitura (a leitura é um modo excelente de transcender-se, de ir mais além com a imaginação e em conhecimentos). No âmbito social: relações, amizades, influências... Nos esportes (tanto os profissionais e os que o praticam como amadores) e nas artes (música, poesia, espetáculos), na diversão, nas festas e em todas as formas de ócio e nas viagens, procuramos mudar, experimentar outras coisas e sensações, sair da rotina e ir mais além do costumeiro, superar limites e barreiras... Tudo isso é experiência humana de transcendência.

E também a transgressão, otransgredir, saltar barreiras, normas, o estabelecido, o proibido, as leis, pode ser às vezes e para alguns, uma forma de transcender. Haverá ocasiões em que isto será delitivo, delinqüência. E em outras ocasiões, diante de normas, proibições ou leis notoriamente injustas e desumanas, será um dever de consciência. (Veremos na quarta conferência que na experiência espiritual de Jesus de Nazaré, é muito freqüente a transgressão ou violação de leis e costumes religiosos e civis desumanos e ofensivos a Deus).

Toda pessoa humana se realiza em um processo de experiências humanas de transcendência. Porque a pessoa humana é um ser com espírito, um ser espiritual. A necessidade, a capacidade e a busca de experiências de transcendência são geradas pelo espírito humano, que é por essência abertura ilimitada e por isso mesmo nunca inteiramente satisfeita, sempre buscando e sonhando, satisfeito um desejo, a pessoa com vitalidade espiritual se sente insatisfeita porque o espírito suscita um novo desejo maior. A vitalidade do espírito se manifesta assim como um manancial de abertura, desejos e aspirações a transcender-se e mudar para desenvolver e crescer.

Este dinamismo espiritual deve ser cultivado, educado, purificado e orientado. Já que por diferentes razões, a abertura à transcendência, a necessidade e a capacidade de abertura, de busca de mudanças e crescimento em novas experiências de transcendência, pode se desviar e acelerar e perverter-se; ou, pelo contrário, pode ser freada e paralisada, pode se atrofiar provocando nas pessoas um fechamento, uma estabilização e não poderão, nem quererão abrir-se e mudar, nem permitirão propostas de mudanças. Conseguiram agarrar-se de tal maneira a determinados costumes e esquemas ou rotinas, que chegam a rejeitar tudo o que é mudança como um mau, porque perderam ou não têm flexibilidade e abertura espiritual e embora sejam propostas mudanças para melhorar, as vêem como perigosas porque não querem perder a segurança que lhes dava seu costume. Talvez tenham vivido alguma experiência traumática, dolorosa e não a assimilaram nem a superaram; se não a integram positivamente em sua personalidade, seu espírito fica fechado, se estabiliza a pessoa e já não crescerá porque se nega a mudar. Fica como uma pedra. E já não raciocina; crê que tem razão porque reage por sentimento, irracionalmente desde as feridas não curadas, ficou bloqueada e obsessionada. No fundo tudo é porque não transcendeu positivamente uma vivência traumática. Talvez, sem ajuda profissional não poderá recuperar o dinamismo espiritual da abertura à mudança. Ninguém estranhe este tipo de anomalia: o espiritual se faz tão complexo e delicado em nossa condição humana, que, em um momento ou outro, em todas as pessoas se produzem disfunções e patologias do espiritual.

Se é necessário esclarecer e descobrir que resistir irracionalmente às mudanças é renunciar a crescer. E renunciar a crescer é uma forma de deixar de viver. O espírito humano e o Espírito de Deus não vão por aí, nos estimulam a transcender, a ir mais além, sem deter-nos no acostumado: muda, tudo muda, também nós mudamos... porque é próprio da nossa natureza mudar, diz a inspirada canção que canta muito bem esta grande voz da América chamada Mercedes Sosa...

Porque a necessidade e a capacidade de transcender-nos é obra do espírito, as experiências humanas de transcendência são uma constante na história da humanidade. Mas a extensão e a intensidade destas experiências variam segundo os tempos e lugares, segundo as culturas e costumes, e segundo os temperamentos e a história pessoal de cada homem e mulher. De uns tempos para cá, a necessidade e a capacidade de viver experiências humanas de transcendência cresceu aceleradamente, máxime nas novas gerações. Hoje se sente mais necessidade e existem mais meios e estímulos para buscar e viver estas experiências. E a globalização do sistema neoliberal de vida, que tudo converte em produto de mercado, explora comercialmente a necessidade humana de satisfazer desejos, aspirações e sonhos, incentivando o consumo, acrescentando a oferta e a demanda. Sobretudo, da experiência de transcender-se no ócio, nos jogos, espetáculos, esportes, festas, presentes, viagens, turismo, música, mega-concertos, etc. Tudo isso cresceu até o ponto de que a indústria e o comércio do ócio, jogos, esportes e diversões, constituem uma das primeiras fontes de ingressos das economias mais fortes do mundo. E não digamos nada das experiências em que se busca transcender-se fugindo da realidade por meio do consumo de drogas.

Sabemos que entre as experiências de transcendência que hoje o povo busca e consome com insaciável sede de transcender-se, tem de tudo: pepitas de outro fino, toneladas de papel brilhante e montanhas de ferro velho; tem trigo e joio: experiências de transcendência construtiva, experiências de transcendência in-transcendente e experiências de transcendência destrutiva e auto-destrutiva. Leonardo Boff, em um livro de divulgação recente com o título Tempo de transcendência, ao mesmo tempo em que elogia a transcendência, inclusive a mais in-transcendente, mas sadia, abre um capítulo dizendo que tudo o que está sadio pode ficar doente: a pseudo-transcendência (página 57-59).

Mas o que nos interessa sublinhar neste momento é que todos os tipos de experiências de transcendência que tanto se procuram e se vivem, revelam a necessidade e a realidade humana de transcenderem-se, como pessoas e povos, e sua enorme atividade espiritual positiva ou negativa. Já dissemos que também na transgressão os humanos buscam transcender-se ativando seu espírito de liberdade, embora muitas vezes, infelizmente, o façam destrutivamente. E sempre há traços de espiritual transcendência positiva, mesmo na experiência mais negativa e destrutiva. Há exemplos terríveis, como o que conta Boff nas páginas 50-51 do seu livro citado.

Fechamos este primeiro ponto da primeira parte com uma frase e uma breve reflexão sobre ela. Diz o famoso filósofo Sören Kiergkegaard: No homem (homem e mulher) o espírito age abrindo o eu à paixão e à ferida da transcendência. Quer dizer: no ser humano, o espírito abre e impele uma paixão pelo conhecimento, pela liberdade, e pelos desejos de felicidade e de transcendência, isto tudo é como uma ferida aberta que nunca se fecha, nem se deve fechar, porque esta paixão-ferida é um caudal inesgotável de espiritualidade humana.

 

Ponto 2:

Abrem-se novos caminhos e metas positivas de “espiritualidade humana”

Desde os anos 60 e 70 vêm aumentando notoriamente os caminhos e as metas positivas de “experiência espiritual humana”, e é até possível falar de uma nova espiritualidade da vocação humana na história, não vivida em termos religiosos mas humanos.

Diz o Novo Dicionário de Espiritualidade (o original é italiano mas está traduzido a várias línguas) no tema Espiritualidade contemporânea: “Abrem-se caminhos a uma abertura ao transcendente, partindo do homem e de algumas de suas experiências” (p. 457). E cita o teólogo G. Baum na revista Concilium, nº 81, dedicado à “Volta do Sagrado”: “Sob a pressão histórica e de certas influências espirituais, surgiu uma nova auto-expressão da humanidade, cujo resultado foi a aparição de um forte sentimento de solidariedade com os demais, sobretudo com os menos privilegiados, e uma forte convicção de estar destinados a uma vida superior (...). Esta nova experiência da vocação do homem, está muito estendida e goza de um grande poder no presente. Esta solidariedade e comum vocação humana não se expressam em termos religiosos”.

Esta nova auto-experiência da humanidade é qualificada pelo Novo Dicionário de Espiritualidade de “notável desquite da espiritualidade expresso em fenômenos humanos”. “Desquite” a respeito de uma espiritualidade passada, expressa em fenômenos religiosos e espiritualistas distanciados da vida humana.

A extensão da consciência humana para as experiências de uma vida em dignidade, liberdade, justiça e solidariedade, nasceu e é vivida em boa parte à margem das Religiões e das Igrejas e às vezes inclusive contra elas. Eu diria que nasceu e se vive um movimento de obediência existencial ao espírito que anima e dinamiza as aspirações profundas do ser humano.

Entre os fatores que desencadearam esta expressão da consciência humana, o Novo Dicionário de Espiritualidade aponta a reflexão humanista do nosso tempo, que superou o positivismo materialista e vê na pessoa humana um ser espiritual criador de sentido na maneira de viver os fatos da vida. E diz que “embora negando a hipótese de Deus, o existencialismo admite que na pura faticidade da vida humana se inclui a capacidade de buscar um fim ou um sentido global à existência, que se deve alcançar no compromisso da liberdade” (p. 462).

O grande filósofo e teólogo Paul Tillich deixou escrito em sua obra A dimensão perdida: “Ser espiritual significa andar apaixonadamente em busca do sentido da vida e manter-se aberto às respostas que podem comover-nos profundamente”.

Podem ser humanamente concretizadas estas respostas nos diversos valores criadores do sentido positivo da vida, que dão unidade e consistência ao fluxo dos acontecimentos (alguns deles negativos e aparentemente insensatos) que se sucedem no fluxo da existência histórica. Assim, a aceitação de si mesmo e a fidelidade ao próprio ser profundo; a investigação científica e a criação artística; a fidelidade na amizade e no amor real e conseqüente; a solidariedade contra a injustiça e contra toda violação do direito à vida e aos demais direitos básicos da dignidade humana; a resistência ao mal, à opressão e à corrupção; a inclusão na vida comum dos excluídos da vida e dos sobreviventes das catástrofes e dos massacres; a memória e dignificação das vítimas sacrificadas por excessos e abusos desumanos; a globalização includente de todos os povos e pessoas, em prol da humanização da vida que se desumaniza; o cuidado integral da vida de toda a criação e da natureza, etc. etc. Tudo o que signifique melhorar e generalizar a qualidade e intensidade da vida humana segundo o espírito.

Ponto 3:

Reconhecimento teológico da “espiritualidade humana”

O reconhecimento teológico da espiritualidade humana é um fato nas Igrejas e nas Religiões. Na Igreja católica está reconhecida pelo magistério universal dos bispos e pelos teólogos e autores de espiritualidade. Todos fundamentam seu reconhecimento do valor humano da espiritualidade na Bíblia e nos ensinamentos de Jesus, assim com na antropologia e na experiência histórica da humanidade.

O Concílio Vaticano II fez oficial este reconhecimento com suas afirmações sobre a presença e a ação do Espírito em todo o universo e em todo o curso da história humana, nas buscas, aspirações, esperanças e atividades positivas de todos os povos, etnias e culturas e em todas as atividades positivas de cada homem e mulher, como ficou exposto na anterior conferência, com citações do Concílio.

Deve-se levar a sério estas afirmações do Vaticano II, afirmações teológicas que fundam suas raízes na antropologia e na teologia bíblica, que foram assumidas e desenvolvidas pela teologia patrística. Isto é, que pertencem à melhor tradição cristã da Igreja e reconhecem que o Espírito age em todos os âmbitos da vida humana e não somente nos âmbitos religiosos, e em todas as pessoas e não somente nas pessoas que professam e praticam alguma religião.

Os autores de teologia e de espiritualidade, já incorporam em seus ensinamentos e escritos esta visão e falam das espiritualidades; dizem que a espiritualidade é patrimônio de todos os seres humanos, e distinguem a espiritualidade humana da espiritualidade religiosa (vivida em uma ou outra religião) e da espiritualidade cristã. Como veremos na próxima conferência, uma coisa é ser espiritual e outra coisa é ser religioso, embora ambas as coisas possam unir-se e coincidir em uma mesma pessoa, como também podem não unir-se e não coincidir em outras pessoas.

O Novo Dicionário de Espiritualidade, na voz “Espiritualidade contemporânea” escrita pelo teólogo italiano Stefano De Fiores, intitula assim seu primeiro trecho: Espiritualidade como opção fundamental e horizonte significativo da existência humana.  Aí diz: “Superada uma mentalidade estreita que fazia da espiritualidade um monopólio dos cristãos e inclusive de uma elite deles, hoje se considera que a espiritualidade deve atribuir-se a todo homem ou mulher que estejam abertos ao mistério, à transcendência e que vivam segundo suas verdadeiras dimensões humanas. A espiritualidade se contempla assim desde uma perspectiva antropológica e é própria das pessoas autênticas que frente ao real e à história, vivem com sentido positivo sua existência”.

Diz que “acima da adesão ou não a estruturas confessionais (de religiões e igrejas) existe uma espiritualidade que une todos os homens e mulheres que chegaram a uma opção fundamental de renúncia ao egoísmo e de abertura ao amor” E cita estas palavras de L. Rossi em sua obra Opção fundamental: “Na opção de fundo não há cristãos e não cristãos, crentes e não crentes: somente há pessoas egoístas ou pessoas que tomam uma atitude oblativa”.

E conclui dizendo, se todo ser é criado no Espírito, que não só age na Igreja, mas também no mundo inteiro, o que pode impedir que falemos de espiritualidade criatural? Bulgakov em sua obra El Paráclito falou a este respeito de Pentecostes natural. A espiritualidade a nível humano constitui um valor positivo: negá-lo seria uma atitude sectária e injuriosa à paternidade universal de Deus”. Acrescentaria que também é uma ofensa grave à dignidade humana.

O reconhecimento teológico da experiência espiritual humana é voz comum dos teólogos antes e depois do Vaticano II. Poder-se-ia fazer uma lista interminável. Citarei somente alguns dos melhores teólogos do século XX. Alguns já faleceram, mas seus escritos são e continuam sendo um tesouro em nossa Igreja. O francês Congar escreveu o livro mais valioso e completo que se conhece sobre o Espírito Santo. E deu como título ao seu testamento espiritual (um livrinho pequeno) O Espírito Santo: Espírito do homem, Espírito de Deus.  E nele deixou esta confissão de fé: Aceito com fervor que o Espírito Santo está presente em todas as partes e seu dinamismo é o dinamismo da história humana; e que age fora dos limites visíveis e oficiais da Igreja. Afirmo-o sem titubear.

Outros nomes são os do teólogo alemão Karl Rahner, que trata este assunto, entre outros escritos seus, em Experiência do Espírito e Espiritualidade antiga e atual. No primeiro tem boas descrições da espiritualidade humana na vida cotidiana. E no segundo afirma que no século XXI, o forte dos cristãos será a espiritualidade, até o ponto de que os cristãos sem autêntica espiritualidade deixarão de ser cristãos.

Outro teólogo alemão é Walter Kasper, um dos cardeais mais famosos em ecumenismo e no diálogo entre Religiões. Em seu livro Fé e história, dedica um capítulo à experiência antropológica de Deus na atualidade.

Entre os teólogos latino-americanos, Leonardo Boff é dos que mais escrevem agora sobre espiritualidade. Dos livros recentes seus, pequenos, de leitura fácil e muito lidos, são Espiritualidade e Tempo de transcendência. Em outro livro recente, A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana, diz: O cultivo do espírito ou espiritualidade, pertence à natureza humana. É parte natural do processo de humanização. É preciso enfatizar que a espiritualidade é um dado antropológico de base. Não é, como muitos pensam, monopólio das religiões e dos caminhos espirituais. Não. É a dimensão profunda do ser humano”.

Jon Sobrino afirma em uma de suas obras de espiritualidade que, “a espiritualidade é tão inerente ao ser humano como sua corporeidade, sua sociabilidade e sua praxidade”.

Segunda parte

Alguns valorizam a “espiritualidade humana” como verdadeira religião natural

Nesta segunda parte somente pretendo deixar constância de que assim é valorizada por diversos povos a espiritualidade basicamente humana. Limito-me a constatar fatos e opiniões reais, sem julgar, nem canonizar, nem condenar. O que é mais valioso é tomar consciência dos fatos reais, não ignorar a realidade. Depois de tomar consciência da realidade, se poderá discernir, mas, não podem ser negados nem condenados os fatos reais antes de tomar consciência deles.

Abramos, pois, os olhos ao fato de que há pessoas que prescindem das práticas religiosas, e das doutrinas, dogmas e costumes das Igrejas e das Religiões (tal vez decepcionadas, aborrecidas por não conhecê-las ou por outras razões) e vivem de outra maneira a espiritualidade humana em sua vida cotidiana, em seu trabalho, em suas relações ou em diversos serviços e solidariedades estritamente humanos. E até o fazem às vezes convencidos de que esta é a primeira e mais verdadeira religião humana. Há pessoas que crêem em Deus e em Jesus, mas não nas Igrejas nem nas Religiões; e pensam que a espiritualidade humana vivida em atitudes éticas de bondade, amor, justiça, respeito e serviço aos demais é a religião que mais agrada a Deus. Têm a intuição ou a convicção de que o humano, digno, justo e solidário, ou humano autêntico e positivo é autenticamente religioso. Sempre se deu, em uma ou outra forma e medida, esta ampliação de sentido entre o humano e o religioso, mas com características diferentes conforme épocas, culturas e conjunturas históricas.

Filósofos e fenomenólogos da religião como o sacerdote e professor espanhol Juan Martín Velasco (muito acreditado) dizem que há experiências espirituais humanas não religiosas, inclusive com deliberada ausência de práticas e crenças religiosas, que são interpretadas e vividas como religiosas. Isto é, experiência espiritual humana qualificada de religiosa, sob formas não-religiosas.

Há três ou quatro anos, chamou-me atenção saber que um filósofo pós-moderno e agnóstico de renome nos ambientes intelectuais e universitários da Espanha, chamado Javier Sádaba, publicava um livro intitulado El hombre espiritual: ética, moral e religión ante el nuevo Milenio. Senti uma grande curiosidade. Procurei o livro e vi que, depois de renegar todos os deuses e correspondentes teologias, escatologias, apocalipses, religiões e igrejas, este filósofo declaradamente agnóstico propõe a religião humana (assim com a palavra religião) do homem e da mulher que se realizam e se transformam e aperfeiçoam vivendo uma moral ou ética humana dos sentimentos, da liberdade e da solidariedade na vida cotidiana. Suas palavras em um parágrafo breve são estas:

“Desejamos uma sociedade forte de espírito, capaz de autocrítica e transformação. Uma sociedade que não se preocupe tanto pelo próprio colesterol, nem pela fome dos muitos que a padecem. Uma sociedade que saiba dizer não, com todas suas conseqüências, à impostura política, ao tráfico de tudo aquilo que mata ou à simples estupidez. (...) E isso só se consegue se a pessoa inteira está em pé. E em dita pessoa são essenciais os sentimentos morais. (...) Contra uma má concepção materialista da vida, existe outra sadiamente material. Aquela que lhe injeta mais vida, que a desperta de sua sesta, que lhe permite olhar o futuro em constante criação. Com espírito, se se compreende bem a força desta palavra e não é reduzida a algo fantasmagórico” (p. 125 e 144).

A mensagem do livro é: tomar a sério a si mesmo como um projeto a realizar-se em uma existência temporal entre os outros, em coesão social; o que implica tomar a sério os demais, tomar a sério a vida comum, tomar a sério o mundo dando sentido à vida em sua cotidianidade aqui e agora: uma moral cotidiana sem escatologia, sem o mais além: uma religião ou religação com a vida: espiritualidade materializada sempre dentro dos limites deste mundo, aproveitando todas as possibilidades de humanização responsável. Ele diz, crescer em humanidade, em alegria e em gozo: uma auto-realização como humanos. É significativo que um filósofo que se confessa agnóstico, reivindique para o espiritual-humano o apelativo de religioso.

Hoje, muita gente, anda por este caminho. Um caso pessoal: na última vez que estive com minha família de férias, disse-me uma sobrinha quando voltava para casa seu marido no domingo à noite: “Vem da sua missa”. Vinha de acompanhar sua tia anciã e enferma, para que a mulher equatoriana contratada para isto, desfrutasse de seu dia livre. Pessoas que sentem que são religiosas vivendo sua espiritualidade humana fora da Igreja e de toda Religião institucionalizada.

Quem se familiariza com a Bíblia, sabe que, em alguns casos, estes caminhos não estão longe da tradição dos profetas que diziam que o culto e a religião que agrada a Deus é praticar a justiça, não abusar de ninguém, acolher os estrangeiros, consolar os aflitos, socorrer os órfãos e viúvas, isto é, os necessitados. Jesus retomou esta tradição colocando a Lei e o Culto a serviço da vida das pessoas, situando a relação com Deus no cotidiano da vida e no fundo da pessoa: deixando a “oferta cultual” de lado quando o próximo tem algo contra alguém, dando culto a Deus em espírito e verdade, e, sobretudo, alimentando a quem tem fome, vestindo os nus, ensinando a quem não sabe, etc. etc. Como um eco forte daqueles profetas e deste Jesus diz a Carta de Tiago que “a religiosidade autêntica e sem mancha aos olhos de Deus Pai consiste em socorrer os órfãos e viúvas em suas necessidades e em não colaborar com a maldade”. (Tg 1, 27).

Fecho esta segunda parte da conferência, acrescentando ama apreciação pessoal. Os autores que propõem a espiritualidade humana para vivê-la à margem das Religiões e das Igrejas, em formas não religiosas, as pessoas que vivem assim são européias. E entre as situações e povos da Europa e as situações, países e povos da América Latina, vejo notáveis diferenças sócio-religiosas, sócio-culturais, sócio-políticas e sócio-econômicas.

A análise das diferenças nestes fatores, nos leva a ver que, na prática, o povo da Europa vive sua espiritualidade humana de diferente maneira que a maioria do povo da América Latina. Na Europa, muita gente a vive em forma secularizada: não em formas religiosas, nem eclesiais, mas em formas laicais, movido em bastantes casos pela descrença. Muita gente lá foge das Religiões e da Igreja, Foge...

Em troca, na América Latina, não abunda a descrença nem o secularismo, nem sequer a secularização. O que abunda é a desigualdade desumana na repartição das riquezas e dos males. E tanto os pobres como os ricos costumam viver suas desiguais situações humanas e nelas sua espitualidade humana, em formas religiosas e inclusive com muita religiosidade. Não fogem das Religiões nem das Igrejas, se refugiam nas Religiões e nas Igrejas, que para os pobres são refúgio, consolo e súplica esperando o milagre; e para os ricos podem servir de justificação e segurança de seus bens e riquezas. Muito mais que descrença, abunda a religiosidade e também a incoerência entre fé e vida, entre Evangelho e vida. E onde abunda a desigualdade desumana, abunda também a religião egocêntrica e não o Evangelho de Jesus, abunda a idolatria, como apontam em seu magistério os bispos da América Latina.

Terceira Parte

A espiritualidade nas Religiões e a espiritualidade cristã, devem cultivar também a maturidade espiritual humana

Esta terceira parte é uma breve e importante afirmação da relação que existe entre a espiritualidade humana que conduz à maturidade humana e todas as espiritualidades que podem ser vividas nas Religiões e nas Igrejas cristãs.

Concluímos assim este assunto: aplicando toda a avaliação positiva que merece a espiritualidade humana (desde o ponto de vista bíblico, teológico e antropológico) às espiritualidades vividas nas Religiões, assim como à experiência espiritual ou espiritualidade de Jesus de Nazaré e a toda espiritualidade cristã que prolonga e atualiza no mundo a experiência espiritual de Jesus.

Conseguir a maturidade humana é uma exigência e um critério básico e universal, irrenunciável para todas as espiritualidades em qualquer de suas formas. Deve-se realizar não só na espiritualidade humana não religiosa, nem cristã, mas também em todas as outras formas e caminhos de espiritualidade. E, por conseguinte, na espiritualidade cristã. A aspiração à maturidade espiritual humana, a humanização, ao incluir-se como dimensão essencial em todas as espiritualidades, se constitui em um critério de autenticidade das espiritualidades nas Religiões e nas Igrejas cristãs.

E isto quer dizer que qualquer espiritualidade ou experiência espiritual que desumanize as pessoas que a vivem, não é verdadeira espiritualidade. E se alguma ou algumas das espiritualidades que são vividas nas diferentes Religiões e nas distintas Igrejas cristãs não conduzem as pessoas à maturidade humana, se não humanizam suficientemente o homem (homem e mulher), se os desumaniza, se desqualificam a si mesmas como espiritualidades.

A efetiva capacidade de humanizar as pessoas, de humanizar a vida cotidiana e também a morte, de humanizar a história e o mundo, que tenha ou não tenha cada espiritualidade, será cada vez mais o critério máximo de valorização das religiões, das Igrejas e das espiritualidades.

Termino ilustrando isto com palavras de um homem que viveu a maturidade humana na espiritualidade da sua religião hindu, enamorado da experiência espiritual de Jesus de Nazaré: Mahatma Gandhi: “Se quando colocamos a mão na água para lavar-nos ou banhar-nos e quando cozinhamos a comida ou a comemos e quando alinhamos as colunas de números na contabilidade ou trabalhamos a terra do campo ou exercemos qualquer outra profissão e quando falamos e nos relacionamos com outras pessoas em qualquer lugar, não vivemos exatamente a mesma vida religiosa como se estivéssemos orando a Deus, o mundo humano jamais se salvará”.