Missionários
Claretianos Brasil

home » Espiritualidade de Claret »

Igreja de Comunhão. José Cristo Rey Garcia Paredes, cmf

IGREJA DE COMUNHÃO A diversidade carismática reconciliada Refletir e conversar uma vez mais sobre ?A Igreja de comunhão: co-responsabilidade e complementariedade? e sobre ?Distintas vocações, carismas e ministérios a serviço da missão? não é uma veleidade. Cada vez que tocamos estes temas, reconhecemos, por uma parte, quanto é belo um objetivo eclesiológico como este que nos propomos (chegar a ser uma Igreja de comunhão e participação) e, por outra, quanto é difícil dar passos sérios para este ideal. Nossas reflexões e discernimento nos ajudarão a encontrar -com espírito criador- novos caminhos. Em tempos de globalização e de localização, em tempos de forte retorno ao sagrado e pós-secularização, em tempos de ideologia neoliberal, o tema da comunhão e da diversidade vocacional e ministerial, adquire novas cores, apresenta novas dificuldades e problemas, oferece novas possibilidades.

I.-      PLURALISMO E SUAS FORMAS 0U OS "PORQUÊS"  DO CHAMADO A SER "IGREJA DE COMUNHÃO"

Nestes últimos anos falou-se muito de “igreja de comunhão”. Muitas razões estão na base disto. Em alguns casos, foi utilizado o tema para pedir mais obediência, maior disciplina, menos aventuras libertárias dentro do conjunto eclesial; neste caso, a linguagem da comunhão eclesial adquire um sentido de comunhão unidirecional, para cima, para a hierarquia, para quem tem o poder religioso ou eclesiástico. Em outros casos, talvez a maioria, esta linguagem expressa uma visão muito rica da Igreja, como comunidade de carismas e ministérios, como pluralidade chamada ao encontro, colaboração e convivência. A comunhão é entendida, neste caso, como circularidade e intercâmbio de carismas e dons, como mútuas relações, de mútuo reconhecimento e valorização, como autêntica fraternidade - sororidade. Neste sentido falamos nós aqui.

Convém, não obstante, perguntar-se porque hoje falamos de “Igreja de comunhão”, não só desde uma perspectiva teórica, mas ativa. É claro, que desde uma perspectiva teórica ou doutrinal, o concílio Vaticano II deixou bem claro que ser igreja é viver em comunhão, em mútuo reconhecimento de nossos dons e carismas. A constituição dogmática “Lumen Gentium” falou esplendidamente sobre a dignidade comum de todos os “Christifideles”: consagrados no batismo-confirmação, partícipes do sacerdócio fundamental do povo de Deus, chamados à existência cristã e enviados em missão de testemunho e caridade ao nosso mundo. Tudo isto sabemos e reconhecemos. Mas, o fato de que -depois de quarenta anos do Vaticano II- continuemos falando de igreja de comunhão se deve a razões mais práticas e existenciais. Expressaria com a seguinte pergunta: que está acontecendo entre nós, para que sejam tantas as chamadas para uma igreja de comunhão? E a resposta é simples, embora posteriormente tenha que ser explicitada em diversos âmbitos: o que está acontecendo é que o concílio Vaticano II, com sua aura profética, abriu um caminho de libertação dos carismas particulares, de valorização da individualidade, de afirmação do próprio e peculiar, da consciência dos próprios direitos e deveres, criou um clima de tolerância, diálogo, mutualidade, que está fazendo surgir uma nova experiência eclesial, mas também está situando-nos, às vezes, nas bordas do desperdício de energias ou inclusive da separação. Hoje se faz necessária uma “nova comunhão inter-eclesial”. O Vaticano II abriu tempos de pluralismo. Este pluralismo se fez presente e atuante em muitas e diferentes frentes.

1.   Pluralismo teológico

No âmbito das idéias o pluralismo se manifestou na aceitação de pontos de vista diferentes, na abertura ao diálogo com outras opiniões, outros credos e confissões. Isto levou a pensar que ninguém tem o monopólio da verdade e conduziu a relativizar muito todas as opiniões. Fez-se entrar no âmbito da opinião -inclusive- o que em outros tempos parecia não ser opinável: o magistério da Igreja. O tempo do pós-concílio esteve tão aberto ao pluralismo ideológico, que se desatou a criatividade intelectual de forma insuspeitável. Eram os tempos das teologias da secularização, da esperança, das teologias políticas, da teologia da libertação, da teologia da morte de Deus, da teologia das realidades terrestres. Era também o tempo das novas perspectivas eclesiológicas: igreja de participação, igreja de missão, comunidades eclesiais de base, processos de eclesiogênese, refundação eclesial...)

Outro elemento que influi no pluralismo ideológico do nosso tempo é a sensibilidade e a consciência pós-moderna. O pós-moderno desconfia das afirmações muito solenes, dos sistemas omniabrangentes e das cosmovisões presuntuosas, que tentam explicar tudo. Levado por uma cura de realismo, o pós-moderno só justifica visões fragmentárias da realidade, afirmações humildes, sobretudo, (filosofia do pensamento débil). Esta consciência pós-moderna faz muito difícil a justificação do sistema doutrinal da Igreja católica com suas afirmações dogmáticas. Surge assim uma teologia “débil”, que se adapta pouco à teologia que a tradição da fé nos oferece. A tolerância para o fragmentário é fonte de pluralismo e de desordem. As teorias do caos e do acaso, não julgam pejorativamente a desordem, mas crêem em si e em sua capacidade criadora. Este novo paradigma de pensamento, abala, preocupa, a quem não sabe como gerir a complexidade.

Outro aspecto deste pluralismo ideológico provém do que chamaríamos pensamento feminino. O pluralismo no âmbito das idéias permitiu o acesso das mulheres no âmbito da opinião teológica e eclesial, como também ao acesso dos leigos, dos que, em princípio, não eram entendidos em temas de opinião religiosa. Esta abertura e tolerância no âmbito das idéias suscitaram, por uma parte, uma grande criatividade, mas, por outra, trouxe consigo confusão, ambigüidade. Havia momentos em que não se sabia se defendia o cristianismo, a fé, ou certas ideologias. Às vezes dava a impressão de que se defendia mais o existencialismo e suas filosofias que a fé cristã, ou o socialismo e o ateísmo que o autêntico evangelho de Jesus. Um pluralismo deste tipo requeria um compromisso sério pela comunhão. Se exigia um mínimo para que pelo menos pudéssemos todos coincidir na mesma fé. Esta foi uma das principais tarefas do pontificado do Papa João Paulo II.

2.  Pluralismo moral

Os teólogos moralistas estiveram muito atentos às mudanças de condutas e costumes nestes últimos tempos. A mudança moral e ética foi grande. As claves de moralidade do nosso tempo se parecem muito pouco com as do passado.

A sociedade é muito sensível a temas como a imigração e acolhida dos imigrantes, a rejeição da violência, a solidariedade com os mais desfavorecidos. A sociedade civil se constitui espontaneamente com um grande sujeito histórico que depõe tiranos (como nos Bálcãs ou Filipinas ou Iraque), que protesta contra violência terrorista (como agora em nível global nos Estados Unidos, Espanha, Reino Unido), que se opõe à globalização econômica neoliberal (como em Seatlle, Gênova, etc.). A juventude foi educada com valores cívicos, democráticos, igualdade de sexos, respeito às diferenças. Há uma globalização de costumes e solidariedade.

No entanto, também se está globalizando uma ética que não é precisamente aquela que defende oficialmente a igreja: os casais de fato, a contracepção, as relações sexuais, o aborto, o divórcio, o reconhecimento dos casais homossexuais....

Há, por outra parte, uma ética de permissividade para com os desmandos da juventude. Acredita-se que é justo permitir-lhes tudo o que for necessário nesta etapa, até que concluam a etapa da “dolce vita”.

A paganização da ética cristã é um fenômeno real, ao que se responde com as velhas receitas, de uma moral impositiva, não dialogante, meramente propositiva.

Os teólogos moralistas, aos que me referia antes, tentaram dar novas respostas, oferecer novos horizontes, oferecer novas explicações. Mas não é fácil o camin ho, dentro da comunhão eclesial.

A prática religiosa cristã não decresce. Mas tanto nas chamadas igrejas do terceiro mundo, por serem do terceiro mundo, e as igrejas do primeiro mundo, por esta situação, o tema moral, no que diz respeito à sexualidade, às relações mútuas, continua sendo problemático para a moral tradicional da Igreja.

As chamadas de atenção dos episcopados, do papado para um modelo ético e moral cristão e fiel são constantes. Mas este magistério encontra a contradição, ou a indiferença social. Há condições sociais, ambientais, históricas, pessoais, educativas, que favorecem o cumprimento da chamada moral cristã? Recorda-se o de São Paulo: conhece a lei e suas exigências, mas não encontra em si mesmo a força para cumpri-la. (Cf Gálatas e Romanos).

3.   Pluralismo na compreensão e atuação da missão apostólica

O pluralismo se manifestou também na missão. Embora todos empreguemos as mesmas categorias para falar dela, há um grande pluralismo na forma de entender missão e realizá-la. Basta ver como se faz a missão em uma igreja dirigida pelos membros da Opus Dei ou como se faz em uma paróquia de periferia, ou em comunidades cristãs de base.

Para uns cristãos a missão tem muito a ver com a implantação dos valores do Reino de Deus (solidariedade, fraternidade e sororidade, serviço), contra os valores do anti-reino. O mais importante, na missão da igreja, não seria a imposição da ritualidade (o sacramentalismo), mas a implantação da justiça, o exercício da caridade, a luta pela paz e integridade da criação. A Palavra de Deus é interpretada em chaves históricas, de transformação social, de Reino.

Para outros cristãos, o próprio da missão consiste em uma tarefa única e fundamentalmente religiosa: catequese, culto, sacramentos. A pastoral se define desde as tarefas eclesiais próprias da ritualidade.

Há quem entenda a missão desde a perspectiva do diálogo de vida. Refiro-me sobretudo às comunidades cristãs estabelecidas na Ásia e nos lugares onde existem as grandes religiões. Ali a missão consiste em conviver, entender, colaborar, dialogar. Nada de imposições, nada de anátemas.

O tema do pluralismo na missão tem preocupado tanto a Igreja que, por isso, tem tido nos últimos anos intervenções autoritárias da Hierarquia Eclesiástica, especialmente com respeito ao tema da teologia da libertação (Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre liberdade cristã e libertação) e de diálogo inter-religioso (Comissão Teológica Internacional, O Cristianismo e as religiões; Congregação para a Doutrina da Fé, Dominus Jesus).

4.   O pluralismo a partir da afirmação das individualidades

Há também um pluralismo que procede da afirmação das individualidades e dos direitos inalienáveis de cada pessoa. Com o passar do tempo tomamos mais consciência do particular, do pessoal, daquilo que não pode nem deve ser absorvido pela massa, pelo geral. Indivíduos que em outros tempos tiveram que sacrificar suas peculiaridades, afetadas pela visão excessivamente hierárquica da comunhão, não estão hoje dispostos a deixar-se levar por esta lógica. Por isso, pedem e exigem legitimamente um lugar para a individualidade e o peculiar. O projeto pessoal, a realização da pessoa, a auto-estima e a auto-valorização, se convertem em categorias importantes para definir a nova antropologia que a sociedade atual exige.

A afirmação das individualidades leva ao reconhecimento da comum dignidade de todos, da igualdade de todos diante da lei, da grande fraternidade e sororidade. Acaba com as visões monárquicas ou aristocráticas da sociedade, para admitir unicamente a visão democrática e popular.

Esta nova consciência da dignidade da pessoa é, obviamente, defendida pela Igreja, mas não deixa de ser difícil gerenciá-la dentro dela e de suas comunidades. A aceitação da singularidade e das suas exigências complica muito as coisas, os processos, o exercício da autoridade.

Um caso especial dentro do pluralismo eclesial é a afirmação da mulher e suas peculiaridades dentro da igreja. A preponderância varonil na direção e no pensamento eclesial predetermina enormemente as novas relações que devem estabelecer-se na igreja entre os sexos. Os complexos de superioridade ou de inferioridade são complexos que levam consigo uma longa história e tornam muito difíceis, em princípio, as relações de mutualidade e co-relação.

As soluções que aparecem neste tipo de pluralismo são frequentemente mais lamentações que soluções reais. São muitas as lamentações com respeito ao individualismo que nos afeta. Detectam-se as atitudes individualistas, mas não se encontram soluções porque o diagnóstico não é profundo e radical.

5.   O pluralismo cultural e eclesial

Uma das características mais importantes do nosso tempo, precisamente em contraste com os processos de globalização, é a tendência para “o local” e a afirmação das culturas e das peculiaridades dos povos e dos grupos étnicos.

Apesar da tendência para a hegemonia cultural de um modelo de cultura globalizado, levado adiante pelo neoliberalismo econômico, surgem por todas as partes resistências culturais, mantidas por grupos étnicos e povos. Muitos povos e grupos humanos resistem com todas as forças serem absorvidos pela tendência globalizadora.

Esta resistência tem muitos rostos. As forças locais (estruturas políticas, como prefeituras, estados, regiões e estruturas culturais) resistem ao globalismo nivelador. Por isso, exigem uma maior autonomia e participação na tomada de decisões que afetam os cidadãos concretos.

A Igreja é uma grande comunidade de mulheres e homens procedentes de quase todos os povos e culturas da terra. Há ainda na Igreja maiorias silenciosas. Diante da mudança de época despertarão e farão ouvir sua voz e assumirão responsabilidades inéditas, que lhes darão um novo rosto à Igreja. Este futuro da Igreja inquieta alguns e enche de esperança a outros. O novo está já nascendo. Mas suscita grandes resistências e temores: o que é explicável em tempos de mudanças tão surpreendentes.

Nossa igreja católica é cada vez menos européia e ocidental. As categorias de pensamento, as formas de governo e instituição, os estilos de espiritualidade, a liturgia (ritos) vão entrando em um processo de transformação cultural e simbólica muito interessante, embora às vezes pareça despercebido.

A mesma Igreja do Vaticano II -com sua eclesiologia das igrejas particulares e da colegialidade episcopal, com a doutrina sobre as liberdades e direitos dos povos, religiões e culturas e o reconhecimento do laicato e das energias carismáticas- abriu uma nova etapa histórica.

Começa a romper-se a hegemonia monolítica do Ocidente. O caminho da igreja pós-conciliar levou a uma sucessiva abertura para o pluralismo eclesial: as igrejas particulares da América Latina, África, Ásia, Austrália e Oceania foram adquirindo maior peso específico dentro da vivência da fé, dentro do magistério e do governo. A Igreja se sente chamada a ser mundial, plural, culturalmente diversificada. As assembléias sinodais extraordinárias (África em 1994, América em 1997, Ásia em 1998, Pacífico-Oceania em 1998 e Europa em 1999), iniciaram de forma oficial e séria este caminho.

Abre-se uma nova etapa na história da Igreja. Alguns grupos gostariam que tivesse um ritmo mais decidido e acelerado; outros tendem a frear por seus receios e temores. Por outra parte, surge um pensamento teológico multicor e polifacético, aparece uma ação pastoral e missionária mais pluricultural e estratégica, emerge uma espiritualidade evangélica configurada com a sabedoria de outros povos e religiões. Mas, por outro lado, tenta-se a unidade, sublinhando os elementos unificantes na forma de pensar e de agir. As novas experiências de igrejas particulares em diversos Continentes, o movimento das mulheres e do laicato, os novos movimentos eclesiais, a difusão da cultura teológica e a nova consciência social de muitos crentes, estão trazendo novas energias para a igreja. Dispõem de uma leitura peculiar da história, de novas claves de pensamento, de uma criatividade que emana de suas culturas e sensibilidade religiosa. Esta situação abre novas perspectivas à nossa razão de ser na igreja e no mundo. Mas também nos faz sofrer tensões muito fortes.

6.   Um caso particular: pluralismo e Família Claretiana

Na família claretiana, família evangelizadora, podemos constatar todas estas formas de pluralismo. O pluralismo pode chegar a tal ponto que fica difícil falar de “família”.

Não negamos de maneira alguma os passos que foram dados ao longo do tempo. Mas nos falta muito para poder chegar a ser uma autêntica família de comunhão. Utilizamos a palavra “família” em um sentido muito amplo. Somos uma família na qual cada um vive sua vida, cada um tem sua economia particular, suas instituições, seus modelos formativos, onde a distinção entre o masculino e o feminino é muito forte. Não somos, de maneira alguma, um fermento de comunhão de diferenças em uma igreja que quer ser igreja de comunhão.

O que digo não tem a intenção de colocar a culpa em nós. Talvez, sim, de colocar um certo freio na tendência a usar em excesso a palavra “família” sem deduzir as conclusões e assumir as linhas de governo necessárias. Nossas instituições e comunidades se aproximam um pouco, mas ainda devem percorrer um longo caminho, se desejam que as novas gerações se formem em um novo contexto formativo e seja possível uma autêntica família claretiana, sem machismos, nem feminismos, sem predomínios, nem suspeitas, em autêntica comunhão e comunicação.

* * *

Como administrar tanta diversidade e tanto pluralismo? Do que se disse anteriormente se deduz que o contexto cultural e histórico que nos tocou viver, não faz nada fácil e simples a comunhão. A comunhão requer sérias e complexas negociações e não simples chamadas a viver em comunhão, sem mais nem menos. Não seríamos, no entanto, justos com a realidade histórica, se não disséssemos ao mesmo tempo, que há fatores e elementos que, como movimento contrastante, favorecem a comunhão e a exigem.

II.- MOVIMENTO PARA A COMUNHÃO NOS NOSSOS TEMPOS

1.   Uma mudança de época

Cada vez nos parece mais claro que estamos atravessando uma etapa inédita da história. Quando amanhece o século vinte e um, o planeta parece estar menor. Bens, dinheiro, pessoas (imigração, turismo) idéias e contaminação viajam ao redor do mundo a uma velocidade incrível. As fotografias da terra tomadas desde o espaço mostram que nosso planeta, embora dividido por fronteiras políticas, está unido por sistemas ecológicos -do qual estamos cada vez mais conscientes e responsáveis (globalização ecológica)-. As redes de internet desenham outro panorama: nosso mundo virtual. Esta situação nova nos interpela, nos desconcerta, nos deixa perplexos e desafia nossa capacidade de resposta. Parece que tudo chama a uma grande e imensa comunhão. O pluralismo tem vocação de encontro, diálogo, interação.

Vivemos em tempos de globalização ou mundialização. Ambas as palavras se converteram em expressão mediática e popular da grande mudança que está acontecendo. Embora coincidem na afirmação da tendência globalizadora, no entanto, há opiniões contrapostas com respeito à sua extensão, a sua valorização ética, à sua utilidade. Interessa-nos tomar consciência do fenômeno e suas repercussões; mas, sobretudo, ir mais a fundo de tudo o que acontece. O mais importante e fundamental é dizer que estamos vivendo uma mudança de época e não somente em uma época de mudanças.

O que até pouco tempo atrás dava sentido a uma maneira de ser, de agir, de avaliar as coisas, entra em conflito com uma nova maneira de ser, de agir e de avaliar. Estamos passando da era industrial à era da informação, da mera produção ao conhecimento (knowhow). A revolução da tecnologia da informação criará em nosso século XXI a super-via da informação. Será este o século da revolução genética com o descobrimento do genoma humano: penetraremos nos segredos da vida. Abrem-se a nós possibilidades verdadeiramente extraordinários. E também riscos horríveis (GS 4-5). Precisamos de governos responsáveis e de uma sociedade educada e responsável. A graça continuará agindo de modo invisível no coração humano (GS 22). E nos conduzirá para a fraternidade universal, mesmo em meio a aparências contraditórias.

Não se trata unicamente de uma mudança tecnológica. O ser humano que transforma suas tecnologias vê-se ao mesmo tempo transformado por elas. Por isso, está mudando nossa percepção do tempo e do espaço. O feixe de ralações que hoje podemos estabelecer repercute em nossa psicologia, em nossas vivências. Temos um acesso quase ilimitado e incontrolado a novos conhecimentos. A informação circula sem freios. A informática nos aproxima e faz que possamos encontrar-nos em tempo real sem necessidade de deslocarmo-nos. Estamos nos fazendo interdependentes a nível nacional e internacional: isto nos faz mais solidários e próximos, mas também nos expõe a manipulações e novas formas de dependência.

2.   Tendência forte na integração das diferenças  e na otimização dos recursos

A globalização costuma ser associada ordinariamente a processos econômicos. Mas descreve também fenômenos da esfera social, como a criação e expansão de instituições multinacionais, a universalização de modelos culturais e a proposta de questões que convém à totalidade do planeta: meio ambiente, desarmamento nuclear, crescimento da população, migrações, direitos humanos, etc. Nos últimos vinte anos, a globalização produziu transformações, sobretudo, no âmbito da organização econômica, as relações sociais, os modelos de vida e cultura, a transformação do Estado e da política. Reduzir a globalização unicamente e um fator, o econômico, é uma “exploração ideológica” (Alain Touraine), ou uma armadilha que justifica sua rejeição, mas que também solapa interesses particularistas e fechamentos nacionalistas.

Há tendências muito sérias para a superação dos pluralismos. O trabalho em equipe é um dos requisitos fundamentais para agir na nova sociedade. Os partidos políticos, as instituições judiciais e eclesiais, as empresas, as novas sociedades exigem e requerem cada vez mais a superação dos individualismos, através da negociação, da mútua colaboração e interação.

Um dos âmbitos onde a comunhão, a coordenação, a criação inclusive da uma mentalidade e mentalização comum, chega a seu ponto alto, é o esporte. A maior preocupação dos treinadores consiste em superar os individualismos, em criar uma mentalidade coletiva e de equipe, em aprender e ensaiar as formas de mútua correlação.

Também a igreja, dentro deste modelo de sociedade, sabe quanto é importante aprender este novo estilo de trabalho em comum, em equipe, ou o que se chama -tecnicamente- a “otimização dos recursos”. São otimizados estes quando se integram todos dentro do conjunto, quando nada se perde e tudo se recupera par o conjunto.

Neste contexto, as chamadas a formar uma igreja de comunhão, não devem ser entendidas unicamente dentro de uma perspectiva de espiritualidade, de teologia ou eclesiologia, de postulados “sobrenaturais”. Há algo de mais básico, próprio de toda sociedade moderna ou pós-moderna: o funcionamento em equipe, a mútua subordinação e interação. A integração é sempre produtiva: a desintegração é sempre mortal.

As sociedades eclesiais sempre resistem à modernização. Formam sociedades da tradição; não são sociedades do movimento. Isto não facilita a entrada em uma nova época de colaboração e interatividade e integração. O que nós queremos conseguir através de postulados espirituais e teológicos, outros o conseguem com mais facilidade através de mediações seculares.

Penso que devemos evitar a tendência à “espiritualização” que nos caracteriza. Ser mais normais e abordar as questões com mais naturalidade, sem recorrer tanto à sobrenaturalidade.  Porque muitas vezes aquilo que chamamos “espiritualidade partilhada”, “missão partilhada”, “igreja de comunhão”, não é senão uma chamada à complementariedade de funções e de capacidades, ao trabalho em equipe que requer nosso tempo, para a necessária superação de individualismos improdutivos.

Por isso, é conveniente abordar desde o realismo e a profundidade este tema.

III.- A COMUNHÃO QUE JESUS SONHOU PARA SUA COMUNIDADE

Há uma perspectiva que nós, seguidores de Jesus, não podemos esquecer. Quero evocar, antes de tudo, o projeto do Senhor Jesus: a comunhão que Jesus sonhou entre seus discípulos. Depois proporei uns critérios de comunhão que respondam à situação que vivemos.

1.   A comunhão sonhada por Jesus

O quarto evangelho coloca na boca de Jesús, já no final da sua vida, esta oração:

"Já não estou no mundo, mas eles estão ainda no mundo; eu, porém, vou para junto de ti. Pai santo, guarda-os em teu nome, que me encarregaste de fazer conhecer, a fim de que sejam um como nós. Enquanto eu estava com eles, eu os guardava em teu nome, que me incumbiste de fazer conhecido. Conservei os que me deste, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura" (Jo17.11-12).

Jesus pede ao Abba, Pai Santo, que cuide da unidade dos discípulos. Eles deverão estar unidos para serem o reflexo da unidade do Pai com o Filho. Em outro lugar, também diz Jesus, que o povo, vendo a unidade dos discípulos, “acreditarão nele”:

"Não rogo somente por eles, mas também por aqueles que por sua palavra hão de crer em mim. Para que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que também eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim" (Jo 17,20-23).

A unidade que Jesús pede ao Abba para seus discípulos é efeito do cuidado e da vigilância do mesmo Deus Pai. É o Pai Santo quem deve cuidar da unidade e velar por ela. Não se trata de um imperativo categórico que os discípulos deverão acatar, mas de um dom oferecido a eles para que o desfrutem como o melhor dos presentes. Mas -nos perguntamos agora- de que tipo de unidade se trata? Pensa Jesus no trabalho em equipe, na coordenação dos trabalhos, na otimização dos recursos, ou em algo diferente? Vejamos, levando em consideração o contexto global do Evangelho.

2.   A comunhão, cuidada providencialmente por Deus

Tudo o que está acontecendo em nosso mundo faz parte da inquebrantável Aliança de Deus conosco, seu povo. Não há nada que nos seja imposto como um destino fatal. Em meio a um contexto como o atual, em seus aspectos positivos e negativos, sabemos que Deus atua e mantém sua Aliança conosco.

Como Jesus, também nossa humanidade se sente tentada contra a Aliança. O maligno nos propõe: 1) converter pedras em pão, desligando-nos da Palavra que sai da boca de Deus; 2) realizar gestos espetaculares, sem deixar que seja Deus quem determine nossa vida; 3) prostrar-nos, render culto e adorar a outros ídolos, esquecendo-nos e sendo infiéis à Aliança com “o Senhor, nosso único Deus” (Mt 4, 1-10). Jesus venceu as provas permanecendo fiel à Palavra, pobre e servo do Reino, defensor dos últimos da terra; assim se converteu em cabeça de um novo Povo fiel à Aliança; e Ele mesmo mostrou sua fidelidade à missão recebida. Jesus nos ofereceu na última Ceia a taça da Aliança, novo e eterna em seu sangue “derramado por todos”. A comunhão com Ele e com sua Palavra e Espírito nos faz superar as tentações do maligno. Maria, presente no Pentecostes da Igreja, como protótipo e imagem da Comunidade a Aliança, nos estimula a “fazer o que Ele nos disser” (cf. In 2,5; Ex 19,8; 24,7).

Estamos em um tempo propício para descobrir o caráter global, mundial da Aliança. A sociedade em rede, a globalização ecológica, a sociedade civil mundial, a consciência da nova solidariedade com todos, nos aproximam do ideal de uma Aliança que tudo abrange, que tudo espera. Jesus, que deu sua vida por todos e a quem confessamos Filho de Deus e Filho do Homem, apareceu e continua aparecendo em sua comunidade como Servo de todos, o que acompanha os seres humanos em seus caminhos de dúvida e abandono. A nós, como Igreja, nos leva a dar testemunho do que vimos e ouvimos, do que tocaram nossas mãos, com relação ao Verbo da vida. Queremos ser transparência de nosso Senhor para que todos possam lembrar sua presença e cheguem a dizer: “Fica conosco!” E o reconheçamos ao partir o pão para todos.

3.   Igreja, servidora da Aliança, missionária do Reino de Deus

Dentro deste contexto nós nos perguntamos sobre o que Jesus estaria pedindo hoje à sua Igreja. Nossa resposta somente pode ser a seguinte: que seja servidora da Aliança e do Reinado de Deus e da catolicidade.

a)    Servidora da Aliança

No ícone de Pentecostes, Pedro apresenta a comunidade do Espírito, formada por homens e mulheres (filhos e filhas, servos e servas), por diversas gerações (anciãos e jovens). Maria, a mãe de Jesus, está aí. Sobre todos e todas o Senhor Ressuscitado derrama o Espírito. Por isso, profetizam, têm visões e têm sonhos. São os dias últimos da Aliança eterna, renovada no sangue do Messias de Nazaré. O Espírito criador e renovador se derrama sobre toda carne. A Igreja se converte em intérprete deste acontecimento que a supera. Jesus com sua morte fez acontecer a grande Reconciliação do céu com a terra.

A Igreja é, portanto, a comunidade da Aliança e, enquanto tal é enviada a todas as etnias do mundo para anunciar a boa nova. Tarefa sua não é conquistar o mundo a Jesus. Pois a Jesus “foi dado todo poder no céu e na terra” (Mt 28, 18-19). Deus Pai lhe concedeu um nome sobre todo nome e o constituiu Senhor e Kyrios (Fil 2, 6ss). A Igreja é servidora do senhorio de Jesus, que faz presente o Reinado de Deus e leva a cumprimento a transformação inaugurada com a Aliança definitiva: “A Igreja, o Povo de Deus... não rouba de nenhum povo algum bem temporal, mas pelo contrário, todas as faculdades, riquezas e costumes que revelam a idiosincrasia de cada povo, no que tem de bom, as favorece e assume; e ao recebê-las as purifica, as fortalece e as eleva” (LG 13).

A comunidade de Jesus capta como, levada pelo Espírito, falar uma linguagem que todo mundo entenda e sinta no coração. Por isso, se perguntava o povo estupefato e admirado: “Como é que cada um de nós os ouvimos em nossa própria língua nativa? Partos, Medos, Elamitas; habitantes da Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto, Ásia, Frigia, Panfília, Egito, a parte da Líbia fronteiriça com Cirene, forasteiros romanos, judeus e prosélitos, cretenses e árabes, todos nós ouvimos falar em nossa língua as maravilhas de Deus” (At 2, 7-12).

A mundialização acontece dentro de uma lógica de igualdade fraterna e respeito mútuo. A Aliança acontece ali onde dialogam, se aceitam e se unem os que são diferentes. O mando de Jesus -“a ninguém chameis de Pai... chefe... todos vós sois irmãos” (Mt 23,8-12)- faz da Igreja servidora da fraternidade e sororidade mundial.

b) Católica

O Concílio Vaticano II falou umas dezessete vezes da unidade do gênero humano e da vocação que tem a Igreja de manifestá-la e realiza-la (LG 1, 9, 48; AG I; GS 45, etc). A Igreja na pertence exclusivamente a nenhum povo, a nenhum Continente, a nenhuma cultura. Ela oferece o Corpo entregue e o Sangue derramado “por todos”. Qualquer pessoa, de qualquer nação, raça ou povo, encontra na igreja de Jesus seu próprio lar e sua família. A Igreja é católica “kata holon”, tendente à totalidade. Jesus a quer multicultural e multiétnica: “ide a todas as etnias” (Mt 28,18). Em Jesus e sua Igreja cai o muro que separa os diferentes e divididos ou enfrentados (Ef 2, 14). Quando a Igreja se define como “católica” não faz referência à quantidade, mas à qualidade; é uma forma de ser “segundo o todo”. Católico significa o que é segundo a característica comum do ser humano.

O processo globalizador -tal como o apresentamos na primeira parte- oferece à Igreja uma ocasião propícia para ser o que está chamada a ser e converter-se em sacramento mais poderoso de Jesus, que é a autêntica “Lúmen Gentium”. Unicamente aquela globalização que discrimina, que se desentende dos pobres, que estende o mal e o terror, é incompatível com a Aliança. A Igreja não pode aceitar a riqueza como “centro”, nem o mercado livre como dogma: não pode “servir a Deus e ao dinheiro (Mamon)” (Mt 6, 24; Lc 16, 13). Sua vocação consiste em ser -através das relações entre Igreja global e igrejas particulares- sacramento da unidade do gênero humano, sinal e instrumento de globalização. A nota da “catolicidade” se converte para a Igreja de hoje em uma chamada, cada vez mais urgente. O “espírito do nosso tempo” a estimula a intensificar seus processos de inculturação e encarnação no local e seus laços de comunhão no mundial. Ainda estamos muito longe de que nossa comunidade eclesial seja reconhecida como a “casa de todos os povos e culturas”.

c) Católica e, portanto, particular ou local

Só uma igreja -nas origens- concentrou em si mesma a totalidade e a particularidade: a igreja mãe de Jerusalém ou a igreja de Pentecostes. Dela nasceram as igrejas particulares e nela se funda a apostolicidade de todas. Nenhuma igreja particular pode agora reivindicar para si a função daquela igreja mãe: aquela experiência histórica permanece como símbolo e modelo intencional para todos. A igreja particular de Roma está agraciada com o carisma de Pedro e Paulo e exerce o serviço da unidade e comunhão católica entre todas as igrejas particulares.

A Lumen Gentium coloca em primeiro plano a Igreja, em singular, como expressão da ekklesia de Deus que abrange a todos (LG 1-9). Mas na visão de fundo desta constituição e de outros textos conciliares (AG 2-5), as igrejas particulares e locais, em plural, têm o mesmo nível teológico que a igreja universal, que é “communio ecclesiarum”. Em LG 23, no contexto da reformulação da colegialidade episcopal se diz da Igreja universal: “Nelas (as igrejas particulares) e desde elas existe a única Igreja castólica (in quibus et ex quibus una et única Ecclesia catholica exsistit”. “In quibus” indica que a Igreja universal se realiza unicamente na multiplicidade das diversas igrejas. “Ex quibus” significa que unicamente a unidade e a totalidade das diversas igrejas forma a Igreja universal. Por outra parte, se diz que a “igreja de Cristo está verdadeiramente presente (vere ad est) em todas as legítimas assembléias locais de fiéis (legitimis fidelium congregationibus licalibus), que recebem no novo testamento o nome de igrejas" (LG 26; CD, II).

Cada igreja particular está chamada a ser católica, isto é, sacramento da unidade de todos os seres humanos. Enquanto comunidade particular está marcada inevitavelmente por uma concepção particular do que significa ser igreja, segundo a cultura na qual está enraizada. A vocação católica de cada igreja particular é um convite permanente a transcender o particularismo e a transcender a si mesma. Não é fácil. Nunca se conseguirá totalmente, até que chegue o Reino de Deus em sua plenitude. A igreja de Roma tem esta função e serviço com respeito às demais igrejas; embora também ela mesma esteja sob o primado da catolicidade. O particular nunca é totalmente católico. É unicamente, deve ser, sacramento da tendência para o global.

As igrejas locais não podem, nem devem, por isto, ser uma cópia da igreja ocidental, mas realidades novas, instituições criativas, carismáticas e proféticas, embora unidas pelo vínculo da fé, do amor e da esperança. O reconhecimento de vários centros eclesiais, no marco da comunhão, participação e co-responsabilidade das igrejas locais e -de modo especial- em comunhão com a igreja presidida pelo sucessor de Pedro, leva a um modelo sinodal de igreja e não centralizado, a um modelo pluricêntrico e não monocêntrico. Este modelo sinodal ou conciliar de igreja foi proposto autorizadamente em vários textos do Vaticano II e foi aprofundado pela eclesiologia de comunhão e pela teologia da igreja particular. A igreja se constitui como unidade e pluralidade, como Igreja única que compreende a todos e como multiplicidade de diversas igrejas e comunidades. O mistério da Igreja se realiza nas duas dimensões, mas só na mútua relação dos dois componentes.

A comunhão de todas as igrejas ver-se-á reforçada por estruturas intermédias e por uma espécie de “sociedade civil” ou movimentos do Espírito, constituídos pela participação de fiéis em assuntos que atingem toda a Igreja (sensus fidelium). Esta “communio” requer uma praxe comunicativa forte para resolver os conflitos eclesiais, evitando seu ocultamento ou sua resolução por via impositiva. O diálogo é a forma única e digna de fomentar a comunhão e realizá-la de forma autêntica e não hipócrita ou manipuladora. Onde há autêntica e sincera comunicação, ali acontece comunhão verdadeira. É necessário colocar-se na “cultura do outro” para entender suas idéias, partilhar suas emoções, vibrar com seus sonhos.

4.   As distintas formas de vida cristã em contextos de catolicidade e encarnação

Dentro da Igreja, assim considerada e no contexto da sociedade mundial, as distintas formas de vida cristã se definem de novo e adquirem um novo significado. Abrem-se novas oportunidades.

A igreja se vê hoje chamada a conciliar o contraste, a gerenciar o plural. Hoje mais que nunca, os cristãos devem ser “peritos em comunhão”. É tempo de fazer as coisas melhor que antes e oferecer à Igreja -que procura ser mais fiel à sua identidade cristã- nossa colaboração. Em um mundo, por exemplo, em que as fidelidades se fazem cada vez mais raras, ser testemunhas da “fidelitas in aeternum” leva consigo o cuidar de modo especial a fidelidade matrimonial, a fidelidade à profissão da vida religiosa, a fidelidade à missão que cada um recebeu.

A comunhão não pode nem deve ser repetitiva, acostumada. O que faz a comunhão autenticamente interessante e importante é a capacidade criadora, o reajuste constante às novas situações que se vivem.

a)    Servidores da Aliança

A grande razão da vida cristã é Jesus, nosso Senhor. Ele derramou sobre nós seu Espírito e nos consagrou. E nós, em resposta, tentamos fazer da nossa vida um projeto de obediência à Aliança e ao mandamento principal: amor com todo coração, com toda a alma e com todas as forças. Nos processos de globalização cada forma de vida cristã leva vida, força, energias importantes. Como cristãos superamos qualquer forma de nacionalismo fechado e apresentamos aspectos interessantes de multinacionalidade. Os valores que defendemos são os valores do Reino de Deus, que clamam pela autêntica humanização de todos. Nosso objetivo ao aproximarmo-nos do povo não é o consumismo ou materialismo, mas o trabalhar pela cultura da vida, fazer crescer uma espiritualidade da justiça e da paz. Nós nos sentimos cidadãos do mundo e do Reino de Deus.

b)    Imigração e conversão deste território em território de missão:

     refundação da sociedade e da Igreja

Nossa sociedade se vê visitada por homens e mulheres de outros países. A imigração converte nossas cidades e povoados em territórios de missão. Recebemos o presente de imigrantes de diversas culturas, raças e povos. Em cada um deles ou delas nos vem a voz de Deus, um presente do Espírito. Nelas e neles o humano assume características para nós novas, que nos interpelam. Deste modo se refundam nossas sociedades. Isto gera também conflitos, tensões, críticas ao vivido até agora. O medo de perder a identidade e a comunhão pode sugerir intervenções inoportunas, baseadas sobre uma primeira impressão ou sobre informações parciais. Só o tempo, e pouco a pouco, o respeito do fragmentário e do provisório darão a maturidade necessária para discernir. Só então aparecerá a “graça do Senhor” em toda sua beleza. O único importante é “permanecer com coração firme unidos ao Senhor” (At 11,23).

Como tudo isto leva não só a uma refundação da sociedade, mas também a uma refundação da Igreja o assunto é sumamente importante. Recordemos como estava formada a Igreja de Jerusalém: judeu-cristãos e helenistas. Os helenistas eram o que hoje são para nós os imigrantes. Que lugar lhes oferecemos dentro do nosso sistema eclesial? Que alterações trazem? Que protagonismos lhes damos, e como os integramos em nossa rede?

Aqui também na Europa se refunda a Igreja, se incultura o Evangelho na cultura da globalização. É compreensível que surjam tensões, dificuldades no discernimento, desajustes no conjunto de cada igreja particular. Às vezes se faz necessário um tempo de espera, para descobrir se o que nasce como novo é aceito e integrado no corpo eclesial. E este pode abrir-se à novidade quando sua vivência é tão forte que percebe o aroma essencial do Evangelho e sabe extraí-lo de elementos acidentais e históricos. A cultura do outro criará em nossas igrejas particulares um clima de paciência e de confiança mútua, capaz de corrigir com o tempo os elementos espúrios que aderiram ao carisma.

c) O elemento fundante da vida cristã

O elemento fundante da vida cristã é o seguimento de Jesus tal como aparece no Evangelho. A “memoria Jesu” no contexto das diferentes culturas exige repensar a herança recebida. Por isso, podemos perguntar-nos como cada forma de vida cristã (matrimonial, secular, ministerial, consagrada ou religiosa) configura hoje seu seguimento de Jesus.

O seguimento não podemos inventá-lo. Basta o encontro com a Palavra. E esta Palavra, acolhida e interpretada nos dará chaves para viver “no seguimento de Jesus”. É uma grande sorte poder dispor na igreja atual de tantos meios para viver em contato diário e permanente com a Palavra de Deus.

O seguimento só é possível se há uma mística de união com Jesus, através dos sacramentos, da vida no Espírito cultivada, da missão partilhada.

c)     A identidade complexa: entender a diferença

Deve-se evitar uma compreensão ingênua e simplista da identidade cristã e obviamente de suas comunidades e pessoas dentro da Igreja. Definir-nos unicamente como religiosos, ou como casados, ou como leigos ou seculares, ou como ministros ordenados... é uma simplismo. Também somos homens ou mulheres, de uma determinada nação, de uma peculiar cultura, etc. Entre os seres humanos não existe a identidade simples. A identidade humana é complexa, é o resultado de múltiplas relações e pertenças. Nossa identidade é pluricêntrica e global; e conta com não poucos elementos particulares constituintes. A maturidade pessoal leva a integrar esta complexidade na coerência e na harmonia. Temos uma identidade complexa. Elemento catalizador é a própria experiência aberta à catolicidade e à mundialidade.

Mão é estranho que surja o desconcerto quando os indivíduos ou grupos da igreja colocam mais de relevo um aspecto da sua identidade que outro: que afirmem sua identidade local sobre a geral, sua identidade secular ou nacional sobre sua identidade religiosa, etc. Não é estranho que a pertença à igreja se mostre nas novas gerações como “pertença débil” e não única. Costuma-se dizer que “une mais o passaporte que a instituição religiosa”. Assim mesmo, somos propensos hoje a um certo “nomadismo cultural”. Diante desta situação, não poucos governantes eclesiais reagem através de uma política de recuperação do amor à instituição, a seus símbolos, a suas formas exteriores. A questão está em qual deve ser a identidade que neste momento histórico devemos favorecer mais, dentro da nossa identidade complexa.

Se consideramos isto, a vocação é também complexa. Não se define por uma única chamada, por uma chamada unidirecional. Cremos que a vocação à vida consagrada seja um elemento catalisador e gerenciador da identidade complexa; não suprime outros aspectos da identidade, mas os integra e assume. Uma concepção simplista ou simplificada da identidade carismática empobrece a pessoa, torna-a fanática e fundamentalista; talvez -e assim aconteceu com freqüência- violenta.

CONCLUSÃO

Antes de falar das formas de vida cristã (vida secular e religiosa, vida matrimonial e celibatária, vida ministerial ordenada e vida diaconal) quisemos refletir sobre as forças aglutinantes da diversidade social que aparecem hoje em dia como “sinais do Espírito”. Com isto, pretendemos fazer-nos conscientes da necessidade de continuar esta “onda do Espírito” para não ficarmos fora da vontade de Deus. Sem comunhão cósmica, mundial, eclesial, interna, não somos ninguém, vamos para a destruição ou desaparecimento. Somente a comunhão salva a vida!.

Descobrir as riquezas do pluralismo é a condição prévia para poder depois desfrutar das riquezas da comunhão. Quem rejeita a pluralidade, quem se desgosta da diversidade, não entende o mistério da Criação, nem da Aliança. Desde uma Criação plural, que inclusive tem a possibilidade do confronto com o divino, se chega a uma Aliança que tudo abrange e tudo reúne.

A missão do ser humano, do cristão se situa neste contexto de pluralidade reconciliada, de diversidade em Aliança, de humanidade e Trindade em comunhão.

 

Madri, Setembro de 2005