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Fundamentação Teológica da nossa vivência Cordimariana

A fundamentação teológica deveria oferecer uma imagem de Maria mais conforme com a verdade histórica e também com a realidade atual da sua presença e sua ação na Igreja. A partir desta colocação procuraremos precisar o perfil claretiano de Maria, perguntando-nos quem é Ela para nós e que aspectos de sua personalidade inspiram e configuram nossa vivência carismática.

Introdução

A fundamentação teológica deveria oferecer uma imagem de Maria mais conforme com a verdade histórica e também com a realidade atual da sua presença e sua ação na Igreja. A partir desta colocação procuraremos precisar o perfil claretiano de Maria, perguntando-nos quem é Ela para nós e que aspectos de sua personalidade inspiram e configuram nossa vivência carismática.

Devemos entender, antes de tudo, nossa entrega filial e apostólica ao Imaculado Coração de Maria, e em que consiste nossa filiação e cooperação na sua missão materna, objeto de dita entrega ou consagração.

Podemos fazer nosso o Magnificat da filiação cordimariana, que Claret nos deixou em sua Autobiografia: “Oh! Meu Deus, bendito sejais por Vos ter dignado escolher vossos humildes servos para Filhos do Imaculado Coração da vossa Santíssima Mãe! Oh! Mãe bendita, mil louvores vos sejam dados pela fineza do vosso Imaculado Coração e por nos ter tomado por filhos vossos!” (Aut. 492).

 1. Legitimidade e sentido de uma mariologia claretiana

Há uma grande diversidade de mariologias. Maria de Nazaré, como pessoa, é única, mas mariologias há muitas.

Será que cada autor ou cada época não se construiu uma Maria à sua imagem e semelhança, à medida de suas idéias, interesses ou inclusive necessidades afetivas?

Para conseguir uma imagem autêntica e bem fundada de Maria, devemos acudir às fontes bíblicas. E para todos e em todos os tempos as fontes bíblicas são as mesmas. No entanto, esta Palavra de Deus que nos fala de Maria se reveste de roupagens diferentes, segundo as mentes, culturas, épocas e lugares.

Deus continua realizando e comunicando-se por meio de Maria, já que Ela faz parte integrante da verdade salvífica de Cristo.

“Mariologia claretiana”. Trata-se de uma particular maneira de contemplar o mistério de Maria, realizada a partir da experiência espiritual que viveu Claret, e passada aos seus herdeiros. O discurso mariológico, neste caso, não é senão uma explicitação e sistematização teórica do que antes de tudo e sobretudo é uma vivência carismática, cuja autenticidade tem sido reconhecida e assumida pela Igreja.

A figura evangélica de Maria tem sido a fonte inspiradora da nossa forma de vida, através dela podemos descobrir também os traços fundamentais da nossa própria identidade carismática, o ideal concreto do missionário claretiano. E o que inicialmente poderia parecer uma assunto acadêmico se converte em uma questão e uma chamada que afeta o mais profundo da nossa vida.

2. Fundamentos bíblicos da mariologia claretiana

As Constituições nos proporcionam a formulação mais completa e autorizada.

2.1 Maria consagrada para a glória de Deus

“Procurar sempre e unicamente a maior glória de Deus” (cf. CC 2, 9). Este é o objetivo principal da nossa vida missionária.

2.1.1 Maria proclama a glória de Deus

O Magníficat constitui uma das expressões mais densas e eloqüentes da alma de Maria, que proclama a grandeza do Senhor, a santidade do seu nome. “O Poderoso fez em mim obras grandes” (Lc 1,49a).

Ela mesma se define Serva do Senhor (Lc 1, 38. 48). E Lucas se compraz em mostrá-la como mulher de fé que guarda a Palavra em seu coração. Desde a alegria radiante transborda seu coração (cf. Lc 1,42-44), vê todas as gerações partilhando de sua alegria: “Todas as gerações me chamarão bem-aventurada”. Desta forma, o Coração de Maria se alegra de que todas as gerações conheçam a misericórdia do Senhor e, conhecendo-a, O louvem e O amem como Ela. Nesta perspectiva o Magnificat tem para nós fortes ressonâncias claretianas, com uma indubitável projeção missionária e universalista.

2.1.2 A glória de Deus se revela em Maria

A glória de Deus se revela em Maria, enchendo-A de graça, santificando-A e consagrando-A: “O Espírito descerá sobre Ti e o poder do Altíssimo Te cobrirá com sua sombra” (Lc 1, 35). Pela ação do Espírito, Ela vem participar da santidade e do poder gerador de Deus, da força e fecundidade do seu amor, e através desta participação se converte em mãe do Santo, do Filho de Deus. Desta maneira, Maria mesma se transforma na imagem viva de Deus Pai, no “rosto materno de Deus”.

De fato, Jesus vai descobrindo através do carinho maternal de Maria este amor misericordioso e entranhável, solícito e providente do Abbá, do Deus todo coração, como escreve o Papa João Paulo II na encíclica Dives in Misericordia, sobre Maria Mãe da misericórdia. (nº 9).

O influxo positivo de Maria percebemos em Bodas de Caná, estimulando Jesus para que assuma sua missão messiânica (eles não têm mais vinho) e colocando nEle toda sua confiança (fazei o que Ele vos disser). Aqui se revela frutuosa sua intervenção, pelo seu tato singular do seu coração materno, pela sua sensibilidade particular, pela sua especial aptidão para chegar a todos aqueles que aceitam facilmente o amor misericordioso por meio de uma mãe.

Maria, mãe da misericórdia, revela a atitude solícita e compassiva de Deus para com os mais pobres e necessitados. O Deus que cumulou de bens os famintos (Lc 1,53) parece falar por Ela quando se compadece dos que não têm vinho. Maria canta, se consagra e se identifica com o Deus da vida, que manifesta sua glória na salvação integral do homem. E, como diz S. Irineu, “a glória de Deus é que o homem viva”.

2.2 Maria ungida pelo Espírito Santo

Em nossas Constituições Cristo é apresentado como aquele que, “enviado pelo Pai e feito homem da Virgem Maria por obra do Espírito Santo, foi ungido pelo mesmo Espírito para evangelizar os pobres” (nº 3). Mais adiante se diz que nós, respondendo à vocação divina, “fazemos nosso o modo de vida de Jesus, que, na fé, a Virgem Maria também abraçou” (nº 5).

2.2.1 Maria, consagrada pelo Espírito de santidade

No texto da Anunciação (Lc 1, 26-38) os exegetas vêem o relato da vocação de Maria: concretamente, Maria descobre e assume aqui o chamado de Deus a ser a mãe do Messias. Tratando-se de uma missão que transcende as possibilidades humanas, a Maria é prometida a assistência divina, o dom do Espírito Santo: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra...”(v. 35). Um sinal que Maria irá descobrindo pouco a pouco na escuta e assimilação da Palavra que logo será a do seu próprio Filho...

2.2.2 Maria, ungida pelo Espírito de profecia e de sabedoria

A mariologia atual contempla Maria como mulher profética, chamando atenção particularmente sobre o Magnificat. Assim como na pregação de Jesus e dos profetas, o Magnificat estabelece uma inseparabilidade entre a causa de Deus e a causa dos pobres, o amor a Deus e o amor efetivo ao próximo necessitado.

Junto a esta chave profética se ressalta também traços sapienciais da imagem de Maria que meditava e recordava e confrontava em seu coração as palavras e acontecimentos relativos ao seu Filho (cf Lc 2,19.51).

Esta função do Espírito encontrou em Maria um coração aberto e generoso, ao mesmo tempo lúcido e responsável, como mostrou já em seu primeiro fiat. Por isto o evangelista Lucas a apresenta como modelo do verdadeiro discípulo, que escuta a Palavra, a conserva no coração e dá fruto com perseverança. E assim a encontramos em meio à comunidade apostólica que espera em oração a vinda do Espírito: com sua presença, a Mãe do Senhor é já uma testemunha e uma prova eloqüente de que Deus cumpre suas promessas.

2.3 Maria, associada a Cristo Salvador

A nós, Filhos do Imaculado Coração de Maria, chamados à semelhança dos Apóstolos, nos foi concedido o dom de seguir Cristo em comunhão de vida e de proclamar o Evangelho a toda criatura. Deste modo, respondendo à vocação divina, fazemos nosso o modo de vida de Jesus, que abraçou também na fé a Virgem Maria (cf. CC 3. 5).

A  partir destas afirmações da nossa Constituição fundamental, vamos ver agora como Maria esteve profundamente unida à pessoa e à missão do seu Filho, partilhando seu gênero de vida e seu destino. Desta maneira Ela viveu exemplarmente o ideal do seguimento de Jesus que, tal como se propõe no Evangelho, é para nós regra suprema (CC 4).

2.3.1 Maria, unida ao destino de seu Filho

Desde o nascimento Maria esteve unida aos destinos do seu Filho: fuga para o Egito, perseguido por Herodes, adorado pelos Magos. Simeão, inspirado pelo Espírito (Lc 2,25) ao reconhecer no menino Jesus o Messias de Israel e a luz dos gentios, anuncia a Maria o destino conflitivo do seu Filho e a dramática repercussão que vai ter sobre Ela mesma: “Este servirá de queda e levantamento de muitos em Israel, e para ser sinal de contradição e a ti uma espada atravessará tua alma” (Lc 2, 34). Ao pé da cruz estava Maria participando da paixão do seu Filho.

2.3.2 Maria, seguidora de Jesus pelo caminho do Servo

O Evangelho apresenta Maria como ouvinte da Palavra, que escuta, acolhe a voz de Deus nos diversos acontecimentos, conservando-a e meditando sabiamente em seu coração (Lc 2, 18) Esta atitude é a que define o verdadeiro discípulo de Jesus e por isso Maria faz parte da nova família do Reino: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a cumprem” (Lc 8,21). A mãe de Jesus é também, como dizia Paulo VI, sua primeira e mais perfeita discípula.

A disponibilidade de Maria se traduz em um radical despojamento de si, como o que realiza Jesus ao assumir o caminho do servo sofredor (cf Mc 10,45).

Maria viveu uma situação de pobreza e dependência social sem rancor nem amargura. Diante dos ídolos do poder, do ter e do saber, soube manter uma grande liberdade de espírito, sendo solidária com os humildes e colocando em Deus toda sua confiança (cf. Lc 1, 51-53).

2.4 Maria na comunidade de discípulos

Os Filhos do Coração de Maria querem seguir Cristo e estender pelo mundo a Boa Nova do Reino em comunidade missionária (cf CC 7). No projeto comunitário nos inspiramos o exemplo da primeira comunidade de crentes que, reunidos com Maria, a mãe de Jesus, tinham um só coração e uma só alma (cf Atos 1, 14; 4,32) Como mãe e como modelo de apóstolos, Maria ocupa também um lugar destacado em nossa comunidade missionária.

2.4.1 Maria, membro do Povo messiânico

Maria proclama a grandeza do Senhor, não a sua. Longe de isolar-se e criar privilégios, Ela se considera a humilde serva do Senhor, porta-voz da esperança dos pobres. Todas as gerações a chamarão bem-aventurada.

Por sua fé, sua piedade e sua pobreza, Maria faz parte deste resto de Israel que desejava o cumprimento das promessas messiânicas e que agora o tem visto chegar com imenso júbilo.

2.4.2 Maria, mãe dos discípulos de Jesus

Esta mãe se manifesta biblicamente em dois episódios: no das Bodas de Caná e ao pé da cruz.

Nas Bodas de Caná ( Jo 2, 1-12) aparece o início dos “sinais” através dos quais Jesus revela sua glória e suscita a fé dos discípulos. Manifesta-se a maternidade na fé de Maria. Assim se compreende sua solicitude em favor dos que não têm vinho, e sobretudo a exortação aos serventes: “fazei o que Ele vos disser”.

Esta função maternal de Maria aparece já explicitada de uma maneira clara e solene no episódio do Calvário (Jo 19, 25-27), quando chegou a “hora” de Jesus e está a ponto de culminar sua obra. Tal explicitação se realiza através de uma palavra de revelação que Jesus mesmo dirige sucessivamente à sua mãe: “Mulher, eis o teu filho” e ao discípulo: “aí tens tua mãe”. “Desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa”.

2.5 Maria, comprometida na causa do Reino

Nossa Congregação não vive para si mesma: somos, antes de tudo, missionários (CC 1). Nossa razão de ser é a missão que Jesus recebeu do Pai e que logo encomendou à sua Igreja: anunciar o Evangelho do Reino a toda criatura, com a palavra e com a vida (CC 3-4). Nesta tarefa nos sentimos estreitamente unidos a Maria. Com Ela e como Ela, segundo nosso carisma missionário na Igreja, trabalhamos pela salvação de todos os homens (CC 2, 9).

2.5.1 Maria, testemunha do Evangelho

O Coração de Maria foi como a boa terra que, depois de ter ouvido, conserva a Palavra e dá fruto com perseverança (cf Lc 8,15 e 2, 19.51). Podemos considerá-la assim como a primeira evangelizada.

Mas Maria não guardou só para si a Boa Nova. Depois do anúncio do Anjo se pôs a caminho para visitar sua prima Isabel.... No nascimento de Jesus, Maria mostra o Salvador do mundo aos Pastores e a todos os de boa vontade, como também aos Magos, estrangeiros, entendendo aqui a humanidade inteira. Podemos entender Maria como a primeira evangelizadora. Tanto Maria com os pastores de Belém e os apóstolos proclamam as maravilhas de Deus (cf Lc 1,46.49; 2,17-20; Atos 2,11).

Como testemunha ocular e servidora da Palavra, sua missão no seio da Igreja nascente é a que descreve o exórdio da Primeira Epístola de São João: “O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e tocaram nossas mãos nos aproxima da Palavra da vida.... vo-lo anunciamos, para que também vós estejais em comunhão conosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo” (1Jo 1, 1.3).

2.5.2 Maria, vitoriosa na luta contra o mal

A missão dos discípulos de Jesus, enviados a anunciar o Reino de Deus e a curar a todos os enfermos e possuídos pelo maligno, era continuar a obra libertadora e salvadora de Jesus.

Ao ver Maria na mulher do Apocalipse, mãe do Messias e vencedora sobre todas as investidas do mal, a Igreja reconhece nela a obra mestra da graça de Deus e a colaboração mais fiel e decisiva que pode prestar o homem à vinda do Reino.

Maria cumpriu sua missão com a humildade de quem se considera “a escrava do Senhor”, uma simples servidora da vontade divina, sem mais títulos de grandeza que o que Deus realizou nela. Nesta atitude de total despojamento de si e de confiada obediência à Palavra, Ela venceu as tentações idolátricas do ter, do poder e do saber, optando por seguir como Jesus o caminho do Servo, que paradoxalmente é o verdadeiro caminho da liberdade e da glória.

As palavras de Maria, compêndio do Evangelho, são úteis para ensinar e repreender, para corrigir e educar na justiça.

O “fazei o que Ele vos disser” (Jo 2.5) é palavra mariana de longo e concreto alcance, onde o acento se deve colocar não só no escutar as palavras de Cristo, mas no concreto colocá-las em prática: “fazei”. Uma concretização materna e feminina que é uma chamada a traduzir a espiritualidade em obras de caridade, justiça , evangelização, promoção, libertação. Em suma amor universal e concreto, sem fronteiras e sem limites, como o coração da Virgem que participa da ânsia universal da salvação e está a serviço do Reino em toda sua plenitude, universalidade geográfica e histórica. Uma tradução concreta da total dedicação à realização do mistério do seu Filho, para glória do Pai e salvação integral do mundo.

3. Fundamentos teológicos da nossa filiação cordimariana

Os traços bíblicos fundamentais que configuram a imagem claretiana de Maria são suscetíveis de uma ulterior elaboração teológica que, de maneira mais precisa e sistemática, apresente os fundamentos teológicos de nossa vivência cordimariana.

3.1 A presença materna de Maria na vida da Igreja

Na vida da Igreja primitiva, convocada pela Palavra, Maria ocupa um lugar singular como mãe de Jesus e como primeira crente (cf Atos 1, 14; Lc 1, 45). A fé de Maria precede e estimula a fé dos discípulos, sendo para eles a testemunha mais qualificada do poder do Espírito e a memória vivente das origens de Jesus. Por isto, quando a Igreja olha para seus inícios, descobre Maria como a mãe na fé.

Mas o olhar da Igreja não vê somente Maria no passado, em suas origens. A Constituição conciliar sobre a Liturgia assim falou de Maria: “Nela, a Igreja admira e eleva o fruto mais esplêndido da redenção e a contempla alegremente como uma puríssima imagem do que Ela mesma, toda inteira, deseja e espera ser” (SC 103). E na Constituição sobre a Igreja se acrescenta: “Da mesma maneira que, glorificada já nos céus em corpo e alma, é imagem e princípio da Igreja que deverá ter seu cumprimento na vida futura, assim na terra precede com sua luz o peregrinante povo de Deus como sinal de esperança certa e de consolo até que chegue o dia do Senhor” (LG 68).

Em sua condição gloriosa, Maria participa plenamente do mistério da Comunhão dos Santos, que é antes de tudo comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito, mas também solidariedade, amor e solicitude de uns para com os outros. No Corpo de Cristo, “se sofre um membro, todos os demais sofrem com ele; se um membro é honrado, todos os demais participam da alegria” (1Cor 12,26). A caridade, que não busca seu interesse, não acaba nunca (cf 1Cor 13, 5.8). Assim, os santos que morreram no Senhor repousam de suas fadigas, mas não se desintessam pelos seus irmãos que continuam trabalhando e sofrendo pelo Reino, até que se complete o número dos eleitos. Pelo contrário, unidos a Cristo, o Sumo Sacerdote que vive para interdecer em favor dos homens, se acham em profunda comunhão com a Igreja peregrina, contribuindo com a sua edificação de muitas maneiras; com seu exemplo, intercessão e solicitude fraterna (cf LG 49).

É importante advertir que a afirmação da presença e o influxo materno de Maria na vida da Igreja não é o resultado de uma operação especulativa, mas o fruto de uma experiência secular, profundamente arraigada e estendida em todos os setores do Povo de Deus. Desta experiência fala Paulo VI: “a maternidade espiritual de Maria transcende o espaço e o tempo e pertence à história universal da Igreja, posto que Ela esteve sempre presente na mesma Igreja com sua maternal assistência” (Signum Magnum, nº 6).

A ação do Espírito em Maria aparece destacada de uma maneira mais explícita e vigorosa no documento de Paulo VI já citado: “Mas não terminou com a gloriosa Assunção a missão de Maria como sócia do Espírito Santo no mistério da salvação. Embora imersa na contemplação gozosa da Trindade bem-aventurada, Ela continua estando presente espiritualmente em todos os filhos da redenção, sempre urgida em seu nobilíssimo ofício pelo Amor não criado, alma e motor supremo do Corpo Místico” (S.M., pg. 357).

Sempre, pois, sob a dependência do Espírito é como Maria conduz as almas a Jesus, as modela à sua imagem, lhes inspira boas decisões, é vínculo de amor entre Jesus e os crentes.

Como se desprende dos textos citados, as formas em que se exerce o influxo de Maria na vida da Igreja podem ser muito variadas: exemplaridade, intercessão, proteção, conselho, animação espiritual... Mas, para não ficar em uma visão fragmentária, convém notar como todas estas formas não são senão outros tantos aspectos ou conseqüências da missão fundamental que recebeu Maria com respeito aos discípulos de seu Filho: esta missão é a maternidade espiritual, tal como aparece e se entende no Novo Testamento.

Deixando de lado outras perspectivas particulares testemunhadas na história da piedade mariana, nos interessa aprofundar no modo em que, como claretianos, nos corresponde viver a relação filial com Maria e colaborar com sua missão materna.

3.2 Nossa cooperação com a missão materna de Maria: filiação e missão

Na economia da salvação, a iniciativa e a eficácia correspondem à graça de Deus (cf Ef 2,4-10), mas esta, a graça, requer a acolhida e a colaboração responsável do homem (cf Fil 2,12). Esta colaboração com a graça divina não se limita ao âmbito da própria salvação e santificação, mas também contribui em favor dos demais. De fato, o Espírito Santo suscita na Igreja uma grande variedade de carismas, ministérios e operações em benefício do Corpo de Cristo (cf1Cor 12, 4-30). Sendo para a utilidade comum, os dons que o Espírito concede a cada membro do Corpo devem ser reconhecidos e apreciados pelos demais, sob pena de extinguir o Espírito. Ninguém pode dizer a outro: “Não preciso de ti” (1Cor 12,21).

Dentro deste contexto, a missão maternal de Maria aparece como um dom do Senhor para sua Igreja que requer ser acolhido com atitude de fé. A entrega (consagração) é a resposta ao amor de uma pessoa e, em concreto, ao amor da mãe” (RM 45).

A partir desta entrega filial, Maria pode desenvolver sua missão maternal, não só como intercessora, mas também como modelo, guia e formadora do discípulo na fidelidade ao Evangelho. A experiência de muitos cristãos, e também de nossos irmãos de Congregação, permite falar aqui de um verdadeiro magistério espiritual, do qual faz eco um dos prefácios que integram a nova coleção de Missas de Nossa Senhora: “Associada intimamente ao mistério de Cristo, Maria não cessa de gerar novos filhos com a Igreja, a quem estimula com amor e atrai com seu exemplo, para conduzi-los à caridade perfeita. Ela é modelo de vida evangélica, dela nós aprendemos: com sua inspiração nos ensina a amar-Te sobre todas as coisas, com sua atitude nos convida a contemplar tua Palavra, e com seu coração nos move a servir aos irmãos” (Formulário 32).

A relação existente entre a maternidade de Maria e a maternidade da Igreja permite compreender como no exercício da nossa missão apostólica cooperamos com o ofício maternal de Maria (cf CC 8). Em que sentido Ela é para nós, como foi para Claret, o modelo e a frágua do nosso ser missionário. A ação evangelizadora é o meio ordinário através do qual Maria exerce sua função materna, já que, como diz o mesmo Concílio, “quando é anunciada e venerada, atrai os crentes ao seu Filho, ao seu sacrifício e ao amor do Pai” (LG 65). Por isto é necessário também que, quem na missão apostólica da Igreja cooperam com a regeneração espiritual dos homens, esteja animado daquele mesmo amor materno que a Virgem  encarnou exemplarmente em sua vida (cf LG 65).

A presença de Maria na vida da Igreja, sua cooperação com a ação do Espírito que gera e educa filhos de Deus (cf LG 63), abre-se um caminho e adquire uma forma visível na pessoa mesma do missionário. Neste contexto podemos situar e compreender melhor a experiência carismática que Claret nos revela em sua Autobiografia:

“O Senhor me disse a mim e a todos estes Missionários companheiros meus: ‘Non vos estis qui loquimini, sed Spiritus Patris vestri, et Matris vestrae qui loquitur in vobis’. De maneira que cada um de nós poderá dizer: Spiritus Domini super me, propter quod unxit me, evangelizare pauperibus misit me, sanare contritos corde” (Aut. 687).

A expressão “o Espírito de vossa Mãe falará por vós”, considerada isoladamente, poderia interpretar-se de várias maneiras. Assim, poderia entender-se com uma identificação do missionário com a Alma de Maria, isto é, com seu sentimentos e atitudes, à maneira como se expressa em um conhecido contexto de S. Ambrósio: “Que a alma de Maria esteja em cada um para louvar o Senhor, que seu espírito esteja em cada um para que se alegre em Deus” (cit. MC 21). Um caso semelhante seria a presença do espírito de Claret na Congregação, tal como aparece refletida neste testemunho de Xifré: “Dirigia nosso amado Padre o Instituto, infundindo-lhe sempre seu espírito apostólico com a palavra e com o exemplo. Amava e era amado. Seus avisos e conselhos eram ouvidos com atenção e acatados e observados como preceitos.” (Crônica, p. 226).

Outra possível interpretação é a que vê nesta frase uma referência a Maria mesma, que fala e age através dos missionários do seu Coração. Claret expressava aqui a experiência de ser um instrumento para a ação maternal de Maria em favor dos homens. Como exemplo desta identificação mística, o testemunho de D. Antonio Barjau nos conservou esta confidência sobre seu programa de governo pastoral de Cuba: “A Prelada será a Virgem Santíssima. Minha forma de governo será a que Ela me inspire”. O Arcebispo Claret vivia em Maria e para Maria. Seu maior cuidado nesta augusta dignidade foi ser seu mandatário e vigário de sua autoridade, ou melhor, ficar tão identificado com Ela, como se não fosse ele quem vivesse e regesse suas ovelhas, mas Ela nele”.(Processo de Vich, EA 665).

O contexto literal da frase exige outra interpretação. Neste caso, o “Espírito de vossa Mãe” é o mesmo Espírito Santo, que ungiu Jesus para evangelizar os pobres (cf Lc 4,18) e que foi prometido às testemunhas do Evangelho (cf Mt 10,20). Se Claret diz aqui que é o Espírito de Maria, isto pode entender-se como uma afirmação genérica da singular relação que existe entre Ela e o Espírito Santo, tanto na origem e desenvolvimento da sua maternidade divina, como no exercício da sua maternidade espiritual para com os discípulos do seu Filho. Mas é muito possível que Claret associe, de maneira mais concreta, a Maria com o Espírito Santo porque identifica o dom do Espírito com o amor que Deus derramou nos corações de seus filhos, e vê ao mesmo tempo o Coração de Maria como a frágua e instrumento do amor onde se inflama o amor do missionário a Deus e ao próximo. Neste Espírito de amor o que o faz a levar a Boa Nova aos pobres e a saúde aos contritos de coração, a dar a vida pela salvação dos irmãos, até gastar-se e desgastar-se por eles, a amar inclusive os inimigos....

Em comunhão espiritual com Maria o missionário participa do seu amor materno, que o impele a evangelizar e a buscar por todos os meios a salvação dos homens. Na entrega a esta missão sente que o Espírito de sua Mãe que fala nele e através dele de tal maneira que seu ministério se converte em instrumento da maternidade espiritual de Maria sobre os homens.

Para terminar, convém sublinhar uma vez mais a unidade e complementariedade que existe entre os diversos aspectos que consideramos. Para isto, vale a pena citar este denso parágrafo do Documento dos Servitas: “A exemplaridade da Virgem é já um efeito de sua presença operante na comunidade eclesial. É força que flui da sua pessoa, já glorificada e consumada no amor, e induz os fiéis a conformarem-se com Ela para conformarem-se mais plenamente com Cristo. Assim sucede que, por obra do Espírito Santo e segundo as estruturas da graça que não é possível codificar, os fiéis, conformando-se com o modelo o reproduzem, reproduzindo o prolongam, e prolongando-o o fazem presente em meio aos homens”. (Fazei...nº 33).

3.3 Nossa entrega filial e apostólica ao Imaculado Coração de Maria

A vivência cordimariana da Congregação se expressou tradicionalmente em termos de consagração ao Imaculado Coração de Maria. Assim, por exemplo, a primeira forma de incorporação ao Instituto era um ato solene de consagração que, em sua formulação mais primitiva, dizia assim:

“Entrego-me e consagro-me ao serviço especial de Deus, de Jesus Cristo e de Maria Santíssima; portanto, guardarei com todo esmero possível os mandamentos da Santa Lei de Deus, os conselhos evangélicos e as Constituições desta Congregação do Imaculado Coração de Maria, elogiadas e recomendadas pelo Sumo Pontífice Pio IX, cuja promessa e consagração faço hoje a Deus e à Santíssima Virgem Maria por meio de vossas mãos” (cf CCTT, p 310).

A fórmula sofreu ulteriormente diversas modificações redacionais, entre as que destacam a menção do objeto ou fim da consagração (o mesmo pelo qual foi fundada a Congregação) e, em particular, a distinção entre consagração e entrega: a entrega se faz ao Imaculado Coração de Maria; a consagração a Deus Pai pelo Filho Jesus Cristo no Espírito Santo.

Esta fórmula fica mais compreensível quando se considera a natureza e as implicações da consagração desde o ponto de visto teológico. Assim, enquanto expressa a total pertença a Deus, a participação em sua santidade e a comunhão com sua vida, o termo consagração só pode referir-se de maneira própria, direta e absoluta a Deus mesmo. Além disso, entendido neste sentido teológico estrito, a consagração constitui, antes de tudo, um acontecimento com caráter passivo e gratuito (descendente); é Deus mesmo quem consagra o homem ao fazê-lo participante da sua vida e santidade, introduzindo-o no seio mesmo da comunhão trinitária. (cf. Jo 17,17-21; 1Cor 6, 11; Ef 2,1-9) Tal consagração se realiza através do Batismo “no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19), pois o batizado é incorporado a Cristo, recebe seu Espírito e participa da sua relação filial com o Pai. Em última instância, é o amor de Deus, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi concedido, ele que nos faz santos e imaculados em sua presença (cf Ef 1,4; 2Tes 2,13).

Trata-se, portanto, da acolhida e assimilação pessoal da consagração recebida no Batismo, que, renovada e desenvolvida nos demais sacramentos, está chamada a configurar toda a vida do batizado. Neste sentido se diz que os cristãos se consagram, sob a ação do Espírito, oferecendo-se a si mesmos como uma oblação viva, santa e agradável a Deus (cf. Rom 6,13; 12,1; Flp 2,17; 3,3; 1Pd 2,5).

Este fundo teológico da palavra consagração é o que faz pelo menos ambíguo falar de uma consagração a Maria, aconselhando o emprego de outros termos mais aptos para expressar o conteúdo intencional desta expressão: entrega, oferecimento, acolhida... Lembremo-nos que, em nosso caso, o termo adotado por nossos textos constitucionais é o de entrega, quer na forma verbal reflexiva (cf CC 71 e 159) ou na mesma forma substantiva (cf. Dir 215).

Mas, uma vez esclarecidos os termos, o que importa é conhecer e assimilar este conteúdo intencional da “consagração” mariana, desde as chaves próprias da nossa identidade carismática. Em poucas palavras, tais chaves se mostram na entrega filial e apostólica ao Imaculado Coração de Maria. À luz de tudo o que vimos, o conteúdo desta entrega poderia resumir-se em uma série de afirmações fundamentais:

  1. Nossa entrega a Maria implica, antes de tudo, o reconhecimento e a aceitação da sua maternidade espiritual como um dom do Senhor à sua Igreja, que a cada um de nós se nos oferece pessoalmente: “Eis aí tua mãe” (Jo 19, 27). A partir de nossa fé em Jesus e nossa vontade de segui-lo, acolhemos a Maria como mãe e mestra no discipulado (cf CC 61). Com total confiança e disponibilidade, lhe abrimos nosso coração e cultivamos amorosamente sua amizade, como um tesouro precioso de nossa herança carismática.
  2. A acolhida filial de Maria e a abertura ao seu influxo materno nos ajuda a consagrar inteiramente nossa vida à glória de Deus Pai, seguindo Jesus Cristo na obra da salvação dos homens e cooperando com a ação santificadora do Espírito (cf CC 2). Deste modo somos configurados com o mistério de Cristo e cooperamos  com o ofício maternal de Maria na missão apostólica (cf CC 8). Para este objetivo nos entregamos a Ela (cf CC 159), procurando alcançá-lo com Ela e como Ela.
  3. A entrega filial a Maria, formadora de apóstolos (cf CC 73), nos dispõe a colaborar com sua missão materna no exercício do apostolado, sendo “cada dia mais humildes, mais fervorosos e mais zelosos da salvação das almas” (Aut 493). A comunhão com seu amor materno nos impulsiona a procurar por todos os meios o bem de nossos irmãos, até nos desgastarmos por eles. Com seu exemplo, com sua intercessão e com seu estímulo constante, aprendemos a acompanhar a ação do Espírito que nos leva a evangelizar os pobres e a curar os contritos de coração (cf Aut 687). Deste modo, Maria nos vai formando na frágua da sua misericórdia e amor (cf Aut. 270, 447), até que, plenamente identificados com Ela, podemos dizer também, como Claret, que o Espírito de nossa mãe fala e age em nós.

Sem dúvida, esta série de afirmações poderia prolongar-se notavelmente se quiséssemos recolher toda a riqueza de conteúdos e matizes que apresenta a vivência cordimariana da Congregação, tal como ficou refletida nos capítulos precedentes, e como poderão ampliar outros estudos.

Segundo o nosso modo de ver, este conteúdo essencial está maravilhosamente recolhido na oração que se fez tradicional entre nós e que, com algum retoque, nos serve de conclusão para este capítulo. Trata-se da chamada Oração filial e apostólica ao Coração de Maria.

Oh! Virgem e Mãe de Deus, eu me entrego como filho vosso.
Ponho toda minha confiança no vosso amor materno,
para que formeis em mim Jesus, o Filho e Enviado do Pai,
o Ungido pelo Espírito Santo, para anunciar a Boa Nova aos pobres.
Ensinai-me a guardar, como Vós, a Palavra no coração,
até converter-me em Evangelho vivo.
Pedi para mim a força do Espírito, para que eu seja testemunha de Cristo entre os homens.
Infundi em mim vosso amor materno, para que lhes revele o Pai
e sintam a alegria de ser filhos de Deus, na comunhão fraterna da Igreja.
Mãe, aqui está vosso filho. Formai-me.
Mãe, aqui está vosso filho. Enviai-me.
Mãe, aqui está vosso filho. Falai por mim. Amai por mim.
Guardai-me, para que não aconteça que, anunciando o Evangelho a outros, fique eu excluído do Reino.
Em Vós, minha Mãe, coloquei minha confiança.
Jamais ficarei confundido.
Amém!